quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Ao redor dos altares: breves reflexões sobre a religiosidade e os templos em Bragança

Singular acontecimento no antigo povoado da Vila de Bragança remete-nos à atuação de dois dos primeiros bispos da diocese de Santa Maria de Belém do Grão-Pará – criada pela Bula Copiosus in misericordia do papa Clemente XI em março de 1719 a pedido do rei de Portugal Dom João V – especificamente no que se refere à presença da Igreja em regiões mais afastadas do centro e ao atendimento religioso às poucas paróquias existentes.

O ano de 1764 serve como marco balizador ao historiador quando pinça dos autos de devassa de março daquele ano os relatos do ouvidor geral, Feliciano Ramos Nobre Mourão, a mando do governador do Grão-Pará, Fernando da Costa de Ataíde Teive, sobre Bragança. Os dados registrados por Mourão durante os meses que percorreu várias localidades (e Bragança) informavam o governador, trazendo à luz elementos que possibilitam compreender a estrutura de poder e todas as estratégias coloniais, já que abordam aspectos políticos, socioeconômicos, religiosos e culturais. Estes eram exatamente os objetivos dos autos de devassa: fornecer uma fotografia da realidade da vila naquele tempo além de conferir in loco tais situações.

Os autos mostram a realidade da vila encontrada pelo ouvidor geral em duas povoações: uma habitada por europeus e a outra por índios da missão jesuítica aqui implantada. Citam as populações, fornecem subsídios para a localização geográfica da vila, o transporte, as distâncias, e, neste caso, relatam aspectos da missão religiosa instalada. É um caso particular o de Bragança, capitania cujo primeiro capitão-donatário era Gaspar de Souza, porteiro-mor da Casa Real e Ourém.

Esses dados contêm relações quantificadas de habitantes, autoridades judiciais, municipais, condições dos prédios públicos e particulares, objetos em poder da Igreja, estado civil dos moradores, discriminados entre senhores, rapazes, moças, crianças e indígenas, profissões e distribuição da mão-de-obra a serviço do rei e do vigário.

Notável para o conjunto de fontes é a descrição dos aspectos religiosos da vila. O orago principal era São João Batista e as carências do lugar eram tantas que o próprio ouvidor sugeriu, entre aspectos materiais, comerciais e econômicos, a edificação de um novo templo indicando Nossa Senhora do Rosário como padroeira, a ser construído pela venda do sal acumulado em poder do almoxarife do lugar, segundo as notícias dadas ao ouvidor Mourão e os anseios da população branca. Mesmo achando o templo antigo espaçoso, vários de seus problemas estruturais são citados, como buracos nas paredes da sacristia, destacando nos altares laterais as imagens de Cristo crucificado e da Senhora de Nazaré.

Detalhe para a provisão que o ouvidor encontrou em Bragança, de autoria do antigo bispo Dom frei Miguel de Bulhões e Sousa, que achou somente um habitante que sabia contar, Plácido José da Silva, aprovado pelo bispo para ensinar outros moradores. O vigário era o padre Jorge Nunes Teite, extremamente elogiado pelo ouvidor em suas posturas, o que garantiria harmonia, paz e concórdia entre os demais habitantes pelo fiel cumprimento dos preceitos religiosos.

Daqui por diante, retomo as ações dos já anunciados bispos em favor da religião em Bragança. Dom frei Caetano da Anunciação Brandão (1783-1790) foi um dos mais eficientes bispos do Grão-Pará na época colonial, beneficiando os colonos da Vila de Bragança, antiga capitania do Caeté anexada à Casa Real, com a criação da freguesia de Nossa Senhora do Rosário em 1786 e pela benção da igreja recém construída pelos índios e colonos possivelmente entre as décadas de 50 e 60 do século XVIII, em uma das quatro visitas pastorais que realizou durante seu bispado e na administração de Francisco Xavier de Mendonça e Furtado. Em suas visitas era servido por índios práticos no transporte em canoas, como se observa em ofícios ao comandante da Vila de Bragança de 18 e de 20 de setembro de 1787.

Em seguida, Dom Manuel de Almeida Carvalho (1794-1818), notável bispo que enfrentou problemas sérios em sua administração, como paróquias sem párocos, templos arruinados, clero isolado nas vilas e trabalhando sem recursos para sua subsistência, inclusive com um processo judicial movido por um padre à época, é o mesmo bispo que recebe e aprova em 27 de janeiro de 1799 o primeiro compromisso da então Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança (IGSBB)

Sobre a religiosidade, a Vila foi atendida não somente em missões jesuíticas que separavam e catequizavam os indígenas, mas também aos moradores de origem européia, que investiram esforços na agricultura e na posse do território que conviveu na fase colonial como área de interseção entre o Grão-Pará e o Maranhão e em seguida, como pólo de entrada de escravos negros redistribuídos a partir de Belém e dos portos do Nordeste.

Além de introduzirem uma nova devoção – a de São Benedito – os negros “optaram” em lutar lado a lado com os senhores para a construção de seu espaço de festividade, barganhando compensações devido à lealdade e à obediência exemplar. Nesta Amazônia colonial, o culto aos santos trazidos da cultura européia constituiu-se em romarias e autos dramatizados, procissões e festividades: uma tradição constante nas práticas religiosas do povo.

Essa religiosidade mesclada de brancos e negros era a gestação de uma nova identidade devota, porém com as articulações da população branca, em separar-se da de cor, livre ou escrava, mantendo as diferenças peculiares a um mundo escravocrata.

Um pouco de história acerca dos templos na Vila de Bragança pode clarear o entendimento. A Igreja de São João Batista, primeiro templo, resquício das missões anexadoras da região da Capitania do Caeté e do Gurupi, não era capaz de atender às mudanças geográficas, urbanísticas e movimentos da população, além de estar em péssimas condições havia muito tempo. Mesmo assim, o templo funcionou como matriz da antiga vila por mais de cem anos.

Foi implementada a construção de outro templo, o de Nossa Senhora do Rosário, atendendo à Irmandade dos muitos europeus e brancos aqui residentes, na parte da vila restrita a estes, afastando os índios. Isso pode ter sido prerrogativa para a organização de outra irmandade anos depois, por índios na comunidade do Vimioso, região limítrofe a Bragança, dedicada a São João Batista.

Como centro de importante devoção, a igreja de Nossa Senhora do Rosário, estava no caminho do rio e o local dos festejos da padroeira se tornara muito apertado dado o fluxo de leigos católicos que participavam dele. Foi assim até meados do século XIX, num culto religioso celebrado em ermidas, pela maioria leiga e acentuadamente familiar. Nesses pequenos templos, construídos por devotos particulares, intencionados pelo fervor missionário das ordens religiosas é que tais sujeitos expressavam sua fé e sua cultura.

Desde a organização urbanística de Bragança, dado o impulso da “indústria da alvenaria”, a igreja começou a ficar distante para as comodidades dos senhores enquanto a cidade, transferida para a margem esquerda do rio Caeté, se expandia para oeste. Até então, a irmandade de São Benedito festejava desde 1798 numa ermida construída na lateral do templo mariano. Devia ser uma construção relativamente precária, de taipa e sem muito conforto. E o trabalho para se comprometer com a construção da igreja para os negros foi árduo e desgastante. O compromisso de 1798, em seu artigo 7º, previa uma paga não só aos irmãos de São Benedito mas a todos os outros cargos da irmandade para que se pudesse erguer o templo em honra ao Santo Negro.

Vários senhores brancos também se filiaram aos quadros da irmandade negra e pode-se deduzir daí um novo controle sobre a confraria, dando mais importância ao Santo Negro do que a já aprovada padroeira de Bragança, Nossa Senhora do Rosário. Com relação à Igreja de São Benedito, um conjunto de leis que definem verba disponibilizada para sua construção, autorizava gastos e renovavam os incrementos em benefícios da igreja dos negros.

Os tempos também se modificaram e o período imperial trouxe uma aproximação maior da Igreja com o Estado, segundo as regras do padroado e do placet concedido ao imperador para a validação das decisões religiosas vindas de Roma a serem aplicadas em terras brasileiras.

Nessa periodização, uma notícia chama a atenção. Vasculhando os livros de atas do Legislativo, em 9 de janeiro de 1854, na sua segunda sessão ordinária, a Câmara Municipal de Bragança foi notificada pela IGSBB requisitando um espaço para a construção do templo beneditino, já que a irmandade trabalhava e festejava em busca de condições para erguer seu templo e abrilhantar ainda mais sua festa.

Buscaram uma colina de largas vistas, motivo para recreios e festas, de que usufruíam os fiéis e irmãos quando para lá iam com seus problemas pedir soluções a São Benedito. A igreja de São Benedito deveria ultrapassar os limites da dos brancos, com mais pompa, contando inclusive com o apoio destes em leis que autorizavam as despesas com a construção do templo. Constam das atas da Câmara que em 1854 os vereadores presididos pelo Sr. Queiroz, defeririam o pedido dos negros “logo que a Câmara mande alinhar o quadro da praça serão os supplicantes deferidos”. Uma batalha passa a ser travada junto à Presidência da Província para ajudar no custeio da obra. A nova construção, mais sólida e duradoura que a pequena ermida, larga e imponente, a cerca de seiscentos metros do antigo local, despertou o interesse dos brancos senhores da irmandade do Rosário.

Vendo o intento prosperar e como a autorização dependia do dito controle eclesiástico, os irmãos de São Benedito partiram para a aprovação eclesiástica, solicitada em 4 de abril de 1868, ao bispo Dom Antônio Macêdo Costa, que respondeu em 22 de abril daquele mesmo ano, requerendo o parecer do Vigário de Bragança à época. Somente vários meses depois, frei João da Santa Cruz, Vigário Interino, a 05 de dezembro, deu parecer positivo. Os trabalhos de construção iniciaram a partir de então.

Os negros estiveram, inclusive, sujeitos a servir de objeto de ganho para o senhor, como no aluguel do escravo Julião, de Francisco Antônio Belém, que arrecadou grandes quantias com o serviço de negros nas obras do templo, em 1876. Além do mais, os negros foram alocados para o trabalho na construção da própria igreja. Verificando documentos de tomadas de contas junto à tesouraria da IGSBB, vemos senhores dispondo seus escravos para o serviço.

A promessa de manutenção de certa amizade entre brancos e negros é quebrada justamente aí. No objetivo de ajudar os negros a viabilizarem o seu centro de devoção, os brancos queriam, na verdade, outro espaço para os festejos da Virgem do Rosário, dentro de um quotidiano de negação, subordinação e humilhação a que estavam submetidos os negros dado o vigente sistema escravista.

Uma dedução é possível fazer. A construção da obra deve ter durado mais de trinta anos até sua finalização, pois o espaço de tempo que se pode retirar dos documentos encontrados perfaz o período de 1854 a 1876, com a então troca de oragos entre Nossa Senhora do Rosário e São Benedito provavelmente em setembro (ou dezembro) de 1872, após autorização do bispo do Pará. Mesmo que as obras ainda não estivessem conclusas a posse já estava garantida aos senhores brancos, da Mesa regedora da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Um sonho de alcance da liberdade, somente com o arrefecimento da devoção na imagem do templo. A promessa é quebrada e a graça alcançada.

A resposta mais comum a esse tipo de acontecimento, como a troca dos dois templos parece muito romântica, porém, é dado concreto. A então Igreja de Nossa Senhora do Rosário passa a abrigar a efígie de São Benedito e vice-versa. E as respostas que não conseguimos dar ainda constituem dúvidas a serem esclarecidas mais adiante e sob a gama de melhores informações e dados, até mesmo de outro ouvidor dos tempos de hoje e a serem partilhados, como foram as duas principais igrejas de Bragança, no final do século XIX.

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