terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A Função do Historiador

Fatos
"O passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da História". (Jacques Le Goff, 1990. p. 24)
Há algum tempo venho me indignando com a forma com que se vem trabalhando a História de Bragança, por algumas pessoas que, num passe mágica, a toque de caixa e nas coxas, se autointitularam como historiadores ou até mesmo historiadores por um trabalho de pesquisa de qualquer natureza. Estou embuído aqui, apenas do desejo de contribuir para o pensamento acerca de um melhor pensamento e de uma melhor construção da História de nossa cidade.

E então, qual seria a função do historiador? Não se trata de uma questão nova, mas válida e ainda pouco debatida. mas continua válida e pouco discutida. A partir de que teorias, recursos, metodologias os historiadores selecionam suas pesquisas e fontes do passado? Que passado? De quem? Para quem? Qual a motivação? Dos "vencedores" ou dos "vencidos"? Qual figura, fato, poder, segmento, personalidades míticas e imaginárias serão construídos à imagem e pensamento europocêntrico? Me valho de algumas considerações captadas na rede de computadores para essa resposta.

Analisando...

"Homem de poder ao lado do poder, o historiador tece as continuidades do espaço político que organiza a nova sociedade. Essa função do historiador, a reprodução do poder, vai perdurar durante muito tempo, até o começo do século XX, adaptando-se aos diversos regimes políticos." (François Dosse, 1994. p.254)

Um modelo tradicional é recorrentemente ensinado, como se apenas os povos arianos e indo-europeus teriam "construído" a civilização grega. Esse modelo de explicação estaria, segundo Martin Bernal (2003), em sintonia com o chamado modelo ariano, cujos pré-conceitos (até mesmo imperialistas!) estiveram relacionados às teorias científicas do século XIX, a partir do ponto de vista da elite culta ocidental, o chamado "berço" da civilização europeia.

Esses conceitos estão, há muito, enraizados na cultura em geral. Questionamos o porquê dessa investida no campo da História por parte de alguns "literatos" ou "memorialistas", assim como a visão positivista e que não dá conta de apreender plenamente as complexidades do passado. Em vez de procurar uma aproximação analisada e técnica com a historiografia produzida e com o passado, esses "profissionais" se preocupam com suas próprias verdades.

Muitas vezes, como nos casos em que me proponho a analisar aqui, essas pessoas chegam a se preocupar com a vida de "grandes homens" (muitos deles infames), em homenagens, em recortes temporais nada convencionais e não utilizam ou sequer compreendem a produção historiográfica atual e abalizada. Nisso, os textos de Michel Foucault e Jacques Le Goff são bastante interessantes. Em nosso métier, a História pode e deve ser repensada com ousadia, tanto por professores e pesquisadores quanto pelos alunos desde seus primeiros anos de formação.

Um dos fatos relacionados é uma "crescente" e "inédita" onda de exageros acerca de obras publicadas em Bragança, em círculos dos auto-intitulados "imortais" (discuto abaixo essa "confraria" de pensadores sobre Bragança), como se nada estivesse em capacidade de produzir História, e História de qualidade. Um obsessão real, atraente e bastante controversa.

Essa obsessão é uma forte herança do século XIX, quando se entendia que "o documento falava por si”. Esses autores não consideram a História sem uma documentação escrita. Exagero ou não, considero essas pessoas falhas em suas tentativas de expor suas pesquisas com técnica historiográfica e seus esforços acabam se passando por um discuros sem propósito. Não posso desconsiderar os esforços e até mesmo as impressões de algumas coisas, porém, é minha (nossa) função considerar tais profissionais esquecidos das possibilidades do discurso teórico, abdicando assim dos outros "documentos" da História, como a vida das pessoas, a oralidade, os sentidos e as entrelinhas dos documentos escritos.

Como vários outros historiadores, a questão de se analisar a prática e a teoria está relacionada em dois pontos principais: a teoria e a prática. Na teoria, ocorreriam ainda três divisões: a epistemologia, a metodologia e a ideologia. A epistemolõgia se ligaria ao conhecimento que, segundo Jenkins, está presente em nossa sociedade atual e não em tempos pretéritos. Esse vínculo com o presente, contudo, não permitiria interpretações consensuais acerca do passado; ao contrário, a interpretação do passado é múltipla (um só passado, mas vários historiadores).

Já no campo da metodologia, a História seria um padrão em meio a uma série de discursos a respeito do mundo, e o conjunto de suas metodologias, algo mais prático, particular e de livre escolha do historiador, que o inseriria em uma historiografia cujas fronteiras seriam dadas, por sua vez, por sua escrita e seu modelo de interpretação.

A metodologia seria uma ferramenta empregada para a análise das fontes selecionadas pelo pesquisador, que utilizaria, para analisar e identificar um determinado período histórico, meios expostos e encontrados pelo uso de determinada/s metodologia/a e pela compilação de fontes.

Por fim, há a ideologia, da qual se apropriam para conferir sentidos e dar significados ao mundo a seu redor e alhures. De acordo com outros autores, a História sempre servirá a um propósito político, seja colaborar com mais substância para as ideologias, seja legitimar atores e/ou instituições, funcionando assim como uma espécie de força legitimadora de um poder público ou uma doutrina social. Não é menos verdade que os primeiros impérios e seus líderes se preocuparam com os arquivos oficiais, narraram passagens de seu governo e conferiram sentido a sua existência e a da coletividade, a exemplo de Hamurábi, Ramsés II, Augusto, Constantino, Carlos Magno, Luís XIV, Napoleão – personagens históricas que se preocuparam com os fatos de seus períodos de governo e/ou de atuação.

Algumas outras respostas cabem aqui. Uma delas trata da "verdade", cuja construção passaria mais pela criação do que pela descoberta. Nesse sentido, Le Goff já defendia uma teoria que apontava para a inexistência de verdade absoluta na História. Tudo passaria, segundo o historiador francês, por uma tradição cultural dominante, influenciada pelo platonismo, cristianismo, razão e/ou ciências (palavras-chaves da cultura no Ocidente).

Em sua análise do poder, Michel Foucault (1979) identifica não a fonte dele, mas sim sua origem genealógica. Segundo o filósofo, essa origem determinaria os chamados micropoderes presentes nas sociedades modernas, os quais não se caracterizariam pelo conceito de classe nem se situariam unicamente nos assuntos da economia ou da política, estabelecendo-se antes em uma complexa rede de forças, presente em todos os aspectos da vida social.

Roger Chartier (1990) situou essa discussão em termos de signos do poder, uma série de monumentos, emblemas, medalhas, moedas, que identificariam o Estado com o objetivo de representar simbolicamente seu poder em vários campos.

Busca pela verdade na História

Nenhum relato recupera inteiramente o passado, em parte porque o conteúdo dos acontecimentos pode ser ilimitado e a capacidade do historiador se resume sempre ao relato de pequenas frações do acontecido. Na visão de Keith Jenkins, a História não consistiria unicamente num estudo do passado, mas sim num estudo da historiografia do passado, pois o pesquisador analisa e interpreta uma obra escrita em um determinado período histórico, e não o passado histórico de maneira geral.

Chamo a atenção para o papel de outros tipos de documentação – não apenas os textuais – como fontes possíveis para a compreensão histórica. Os historiadores contemporâneos, de maneira geral, utilizam diversas documentações para construir, ou reconstruir – como dizia Georges Duby – esse passado. Estão disponíveis, atualmente, documentos iconográficos e arqueológicos que podem confirmar ou não a interpretação do historiador.

O uso dessas outras fontes estão defendidas suficientemente por Lucien Febvre em Combates pela História (1985) e pelo historiador Carlo Ginzburg em Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História (1989), ambos com uma especial fundamentação para a interpretação do passado.

E a resposta aos "literartos imortais" vivos de Bragança é a de que não se deve mesmo escrever acerca do passado a partir de uma posição e visão ideológica pré-definida (como fizeram os povos europeus, ou mais recentemente, os nazistas alemães e os fascistas italianos da década de 1930). O discurso histórico, bem como outros, pode ser usado (mesmo involuntariamente) com fins políticos, legitimando ideologias ou poderes (ou a se constituir) num determinado grupos social. Existem, portanto, implicações éticas e políticas no escrever da História.

Isso conclui que os historiadores devam ser capazes de, entre o domínio de diferentes metodologias de seu campo e das ciências sociais e afins, de tornar-se suficientemente reflexivo a respeito da maneira de se fazer História no mundo atual.

Não se pode negar as contribuições valiosas da Escola dos Annales (de Marc Bloch e Lucien Febvre). De lá para cá, se questionou mais a produção historiográfica, como Jacques Le Goff, Georges Duby, Le Roy Laudurie, Paul Vayne. A maior transformação, entretanto, talvez tenha sido provocada fora da história, como sugere alguns autores, ao apontar a obra do filósofo Michel Foucault como um momento de inflexão na historiografia.

Sobre as transformações ocorridas na História nos últimos anos, sugerimos ainda as discussões de Hayden White, Geoffrey Elton e Edward Carr em What is history?, outro trabalho relevante que pode nos ajudar, como leitura obrigatória nos recentes debates acerca do campo da teoria e da filosofia da História.

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