sábado, 25 de dezembro de 2010

E vem São Benedito, tradução e alma de Bragança

No início de dezembro, quando quase tudo para em respeito ao Natal ou ao feriado de Nossa Senhora da Conceição (ou Iemanjá para alguns), Bragança, pequena cidade do nordeste paraense, vira um amontoado humano.

Com aproximadamente cem mil habitantes, o lugar recebe, todos os anos, entre 35 e 50 mil pessoas, devotos peregrinos que vêm seguindo o “chamado”, de vários cantos do País e do Estado, para fazer e pagar promessas, reverenciar a imagem e reconfirmar o prestígio de São Benedito, o Negro, nascido filho de escravos etíopes, morto há mais de quatrocentos anos, benfeitor, co-padroeiro e, sobretudo, tradução e alma de Bragança.

Mais do que uma festa popular como tantas outras, o que ocorre em Bragança é um espetáculo sem igual de fé, resistência, crença e esperança. É impressionante, quase inacreditável, principalmente se considerarmos quem são essas pessoas, o modo como elas chegam e expressam sua devoção. De maneira geral, as únicas coisas em comum entre os quase 60 mil devotos são a pobreza e uma fé inquebrantável no poder intercessor de São Benedito. Sem dinheiro, sem perspectiva, geralmente analfabetos, morando em lugares afastados como a região das Colônias, das Praias e dos Campos, praticamente só resta a essa gente acreditar num milagre que venha a resolver-lhes os problemas.

Humildes, não pedem fortuna nem fama. A maioria, mais de 80 por cento dos romeiros e devotos, reza por saúde, para que as pernas não cansem, para que a cabeça pare de doer, que os braços voltem a funcionar, que o filho sare.

Uma das maiores atrações locais é a Igreja de São Benedito, à frente do rio Caeté, de herança jesuítica e indígena, onde são depositados centenas de velas, pés de madeira, cabeças de cera, seios de gessos, braços de mentira, casas em miniatura, potes de barro, bonecos de pano e até cabelos, que representam partes do corpo ou instrumentos de promessa que tiveram a ajuda e graça por intermédio de São Benedito, isso sem falar no dinheiro daqueles que tiveram seus pedidos atendidos.

Nem todos os devotos têm alguma coisa a dar em troca dos favores do Santo Negro. A única moeda que possuem para retribuir a graça alcançada é o próprio corpo. Por isso, pagam suas promessas vestindo-se apropriadamente de marujo ou maruja, espremendo-se no barracão para dançar, na procissão, para acompanhar a efígie do Santo ou em frente ao seu andor para conversar com seu protetor, algo profundamente simples, mas que, às vezes, como acender uma vela, implica em vencer a pé e sozinho uma etapa da vida, representada na procissão.

A cada ano, em oito meses, a Igreja Católica e três comitivas organizam o processo de Esmolação com as três imagens diferentes de São Benedito, arrecadando víveres e a fé dos comunitários do interior e “pagando” esses esmoladores que deixaram suas famílias em casa. Estima-se que circule uma importância significativa nos comércios da cidade por causa da venda de bugigangas e dos presentes de Natal. E por que não dizer, dos artefatos que compõem a indumentária característica do período.

Nos dias da festividade, cada espaço do largo de São Benedito é ocupado por barracas e pessoas que vendem de tudo: bijouteiras, lembrancinhas, caixas de vela, estátuas de santo, especialmente de São Benedito, quinquilharias, rojões, chapéus de marujo e maruja e, presença constante em quase todas as festas, objetos de uso religioso como terços, escapulários entre outros.

Como há uma multidão de almas caridosas, mendigos e pedintes de várias partes emigram para estender suas mãos em esquinas e em locais concorridos, como perto e dentro da Igreja, na praça do Coreto, hoje chamada de Praça Antônio Pereira. Uma vez que os hotéis de Bragança são insuficientes para abrigar tantas pessoas e, de qualquer modo, essa gente não tem capital para tanto, muitas famílias locais acolhem seus parentes e agregados para “passar” o período que vai do Natal ao Ano Novo.

Um lugar como este, no entanto, atrai turistas incautos. Para os bragantinos, essa química inefável de fé e de cultura dá a impressão de funcionar como chamariz ao fervor de tantos que “atendem o chamado”. Na Igreja, depois de atravessar seus quase cinquenta metros de marujos e marujas, durante a missa solene e retransmitida pelo rádio, há uma imagem preciosíssima de São Benedito, de alguns centímetros, num altar-mor ornado de flores. Após a procissão, bastam ali algo entre dez minutos para assistir a pungentes e comoventes demonstrações de fé. De cabeça e reverente, os devotos vem andando em passos lentos e calculados, como se estivessem indo ao encontro do próprio Papa ou de Jesus Cristo em pessoa. Em sinal de respeito tiram seus chapéus e disputam espaço para terem a honra de tocar a imagem de São Benedito, beijar a fita, enquanto rezam, fazem seus pedidos ou agradecem os milagres recebidos. Nos olhos de todos cintila um brilho de certa idolatria e de esperança numa demonstração rascante de uma crença inabalável. De novo, para os turistas incautos, é uma cena inconcebível: a fé em estado bruto e sólido, palpável e indelével, contra os riscos que sofrem tantos pelo hedonismo e pelos contra-valores da sociedade “dita” moderna e civilizada.

Depois de passar quase dois dias inteiros pagando suas promessas, vestidos ou não da indumentária da Marujada, os devotos encerram sua festa com a procissão pelas ruas de Bragança e com uma missa campal em frente à Igreja, construída a mando dos primeiros missionários que aqui estiveram. Nesse dia vinte e seis e em horário indefinido, todos se reúnem para ouvir as palavras acalentadoras do discurso longo do Padre e Vigário. Diante de milhares de pessoas, as humildes e as humilhadas, que dificilmente entenderiam o significado do conceito de manipulação de massas, ele abençoa os fiéis que reviraram suas vidas para visitar a cidade e começa sua preleção com a seguinte explanação:

“- O que acontece é uma legítima demonstração de fé, de amor a Jesus Cristo, por São Benedito!” É só depois de ouvir essas duas palavras – “são” e “Benedito” – que marujos e marujas, ao som das canções beneditinas e caboclas, desfranzem a testa e tiram seus chapéus deixando de lado aquela expressão de quem não está entendendo nada para trocá-la por urras, vivas e palmas ao nome que mais lhe cala no peito: o do Glorioso São Benedito.

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