Não se sabe
bem como se ouve se ouve o chamado. Nem nunca se saberá. É um mistério da alma
humana, tão grande como os outros que por aí existem. Acontece que um
bragantino que se preza, já recebeu o chamado em muitas épocas do ano, porém
mais se acentua neste último mês, que dezembro é o mais bragantino dos meses.
Está no trabalho, pensando nos seus negócios, longe da terra, seja em Belém, em
Pekin ou New York, ou onde seja, metido, coitado entre cifras e eis que de
repente começa a ouvir o estranho chamado. Isso seja ele médico, advogado,
comerciante, jornalista, industrial ou de qualquer profissão. O grande mal é a
folhinha. Põe os olhos na folhinha, conta os dias que faltam para a grande data
e rebenta de tanta saudade. É mesmo como se fosse um toque de reunir neste mês
e que o indivíduo, por estar preso, não possa atender ao som agudo que reclama
a reunião. O pobre do caeteuára, espicha os olhos para aquele número na parede,
dia 26 de dezembro e acha tudo ruim ao seu redor. Nada existe de novo na garota
que passa voluteando na calçada. Nem no filme de estréia no Metro, nem nas
provocantes “Folies”, cheias de tantos pedaços de mau caminho. Em nada. Tudo negro, para
ele que se preza de ser bragantino da gema. Amanhece doente. “Hoje não vou
trabalhar. É dia 26 de dezembro”. Pronto e isso basta. É uma sagrada resolução,
porque ele sabe que na terra distante, caia o dia 26 de dezembro em que dia
cair, é sempre feriado municipal. Ninguém trabalha. Ali no duro, durinho mesmo,
a greve é geral. É feriado popular, dia do Milagroso Santo do Caeté, Protetor
Genuíno de Todos os Bragantinos. São Benedito, o Santo Negro Quituteiro, nesse
dia vê-se cercado pela multidão de seus fiéis todos juntos, Bragança em peso,
prestando a sua grande homenagem.
O bragantino
se lembra disso, destroçado, dentro de um apartamento ou de um miserável e
apertado quarto de pensão suburbana. Ou mesmo dentro de um palácio. Espia para
a folhinha. O número. Fecha os olhos. Dia claro, o sol invadindo e banhando
toda a extensa terra do Vale do Caeté. Vem surgindo da terra o batuque, o som
do tambor, o violino modesto e principalmente a cantilena em coro dos festeiros
na Barraca da Santa. É a marujada. A nossa e só nossa marujada. As pretas e as
morenas de saiões vermelhos, casaquinhos brancos, que foram guardados um ano,
juntamente com a piprioca e o alecrim dentro da mala, o chapéu de pluma de
todas as cores, do guará, do pato, aqueles chapéus cheios de espelhinhos,
miçangas e outras besteirinhas.
O tambor está
soando. A barraca cheia, o arraial cheio e cheia está a Igreja do Santo Preto,
dos seus devotos, que o Santo Benedito é muito milagroso. Vem gente de longe
pagar promessa. O bragantino se lembra. Um dia assistiu contrito também o Santo
Sacrifício na Igrejinha simples, que se espelha no Rio Caeté, por tantos e
tantos anos. É a tradição, as danças bragantinas, o lundum, o retumbão, ele tem
vontade de largar a cama e descalço, no assoalho do quarto, ouvindo como está
os sons vindos de longe, sair dançando, sozinho, o retumbão e o lundum. Depois
se lembra da grande confraternização no Vale do Caeté, de todos os bragantinos
e o batismo dos que não o são, que se dá nesse dia na barraca da juíza. E
finalmente, o grande instante. O popular padroeiro, sai mais uma vez, para
visitar o seu povo, o bom e laborioso povo do Caeté, naquela sua visita anual
pelas ruas de Bragança, abençoando os devotos, distribuindo benção a todos os
presentes. Está ouvindo o chamado. Perfeitamente ouvindo. “Porca miséria desta
vida. Já três 26 de dezembro que eu perco aqui”, reclama o pobre do bragantino
longe de sua terra, no dia máximo para toda região. Ouve o telefone. No outro
lado alguém pergunta o motivo de não ter vindo trabalhar. E ele responde
prontamente para o inesperado interlocutor:
Não sabes,
rapaz? Hoje é dia 26 de dezembro. Eu não vou trabalhar. Sabe lá o que é isso,
esse chamado que terra envia sobre montes, matas, serras e cidades? É a voz do
sangue que só se apaga com a morte e com mais nada. Dia 26 de dezembro, cisma o
bragantino distante. Mora no seu coração uma grande, inextinguível saudade, que
ele é bragantino de brio, sentiu o chamado e não resiste em sonhar.
Fonte: RAMOS, Jorge
Daniel de Sousa. “O Chamado”. Bragança
Ilustrada. Bragança (PA). n. 9/10, 1952. p. 3-8.
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