sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

"O Chamado", por Jorge Ramos, há 60 anos.



Não se sabe bem como se ouve se ouve o chamado. Nem nunca se saberá. É um mistério da alma humana, tão grande como os outros que por aí existem. Acontece que um bragantino que se preza, já recebeu o chamado em muitas épocas do ano, porém mais se acentua neste último mês, que dezembro é o mais bragantino dos meses. Está no trabalho, pensando nos seus negócios, longe da terra, seja em Belém, em Pekin ou New York, ou onde seja, metido, coitado entre cifras e eis que de repente começa a ouvir o estranho chamado. Isso seja ele médico, advogado, comerciante, jornalista, industrial ou de qualquer profissão. O grande mal é a folhinha. Põe os olhos na folhinha, conta os dias que faltam para a grande data e rebenta de tanta saudade. É mesmo como se fosse um toque de reunir neste mês e que o indivíduo, por estar preso, não possa atender ao som agudo que reclama a reunião. O pobre do caeteuára, espicha os olhos para aquele número na parede, dia 26 de dezembro e acha tudo ruim ao seu redor. Nada existe de novo na garota que passa voluteando na calçada. Nem no filme de estréia no Metro, nem nas provocantes “Folies”, cheias de tantos pedaços de mau caminho. Em nada. Tudo negro, para ele que se preza de ser bragantino da gema. Amanhece doente. “Hoje não vou trabalhar. É dia 26 de dezembro”. Pronto e isso basta. É uma sagrada resolução, porque ele sabe que na terra distante, caia o dia 26 de dezembro em que dia cair, é sempre feriado municipal. Ninguém trabalha. Ali no duro, durinho mesmo, a greve é geral. É feriado popular, dia do Milagroso Santo do Caeté, Protetor Genuíno de Todos os Bragantinos. São Benedito, o Santo Negro Quituteiro, nesse dia vê-se cercado pela multidão de seus fiéis todos juntos, Bragança em peso, prestando a sua grande homenagem.

O bragantino se lembra disso, destroçado, dentro de um apartamento ou de um miserável e apertado quarto de pensão suburbana. Ou mesmo dentro de um palácio. Espia para a folhinha. O número. Fecha os olhos. Dia claro, o sol invadindo e banhando toda a extensa terra do Vale do Caeté. Vem surgindo da terra o batuque, o som do tambor, o violino modesto e principalmente a cantilena em coro dos festeiros na Barraca da Santa. É a marujada. A nossa e só nossa marujada. As pretas e as morenas de saiões vermelhos, casaquinhos brancos, que foram guardados um ano, juntamente com a piprioca e o alecrim dentro da mala, o chapéu de pluma de todas as cores, do guará, do pato, aqueles chapéus cheios de espelhinhos, miçangas e outras besteirinhas.

O tambor está soando. A barraca cheia, o arraial cheio e cheia está a Igreja do Santo Preto, dos seus devotos, que o Santo Benedito é muito milagroso. Vem gente de longe pagar promessa. O bragantino se lembra. Um dia assistiu contrito também o Santo Sacrifício na Igrejinha simples, que se espelha no Rio Caeté, por tantos e tantos anos. É a tradição, as danças bragantinas, o lundum, o retumbão, ele tem vontade de largar a cama e descalço, no assoalho do quarto, ouvindo como está os sons vindos de longe, sair dançando, sozinho, o retumbão e o lundum. Depois se lembra da grande confraternização no Vale do Caeté, de todos os bragantinos e o batismo dos que não o são, que se dá nesse dia na barraca da juíza. E finalmente, o grande instante. O popular padroeiro, sai mais uma vez, para visitar o seu povo, o bom e laborioso povo do Caeté, naquela sua visita anual pelas ruas de Bragança, abençoando os devotos, distribuindo benção a todos os presentes. Está ouvindo o chamado. Perfeitamente ouvindo. “Porca miséria desta vida. Já três 26 de dezembro que eu perco aqui”, reclama o pobre do bragantino longe de sua terra, no dia máximo para toda região. Ouve o telefone. No outro lado alguém pergunta o motivo de não ter vindo trabalhar. E ele responde prontamente para o inesperado interlocutor:

Não sabes, rapaz? Hoje é dia 26 de dezembro. Eu não vou trabalhar. Sabe lá o que é isso, esse chamado que terra envia sobre montes, matas, serras e cidades? É a voz do sangue que só se apaga com a morte e com mais nada. Dia 26 de dezembro, cisma o bragantino distante. Mora no seu coração uma grande, inextinguível saudade, que ele é bragantino de brio, sentiu o chamado e não resiste em sonhar.

Fonte: RAMOS, Jorge Daniel de Sousa. “O Chamado”. Bragança Ilustrada. Bragança (PA). n. 9/10, 1952. p. 3-8.

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