Longos
ribombos de tambores longínquos sorrindo de quebrada em quebrada, ritmados,
acelerados por vezes, despertando a alma quieta e laboriosa da colônia e dos
povoados, avivando o lume vacilante dos orató rios nos
tugúrios, nos ranchos ribeirinhos até se perder com o rumor abafante do centro
urbano.
Que sonho é
esse, ferindo a sensibilidade auditiva da gente, neste fim de ano – interrogo
eu – interrogam tantos?
Antes, muito
antes, prescutaram os ouvidos de Jorge Ramos, quando gravou no beiral da
“Janela de Bragança”, a realidade convocativa desse som. É o “chamado” de São
Benedito, na sua peregrinação, comumente chamada “esmolação”, termo genérico
que não é bem isso, porque, quem menos “pede” na região onde lhe erigiram uma
igreja – é esse São Benedito – frade siciliano, embaçado no burel franciscano;
leigo, porteiro do convento, depois ecônomo, cozinheiro por humildade, esmoler
e administrador, milagroso em vida, taumaturgo depois da morte, reconhecido
pelo negrume da cútis, embora haja versão de que nenhuma descendência direta
tivera ele na genealogia afro, e nós sabemos que entre os bem-aventurados não
há preconceito de cor e a sua humildade fê-lo exaltado na veneração do povo em
toda a imensidade deste pátrio rincão.
Esmolando ou
não, a presença da ícone do Santo afogada na profusão das flores e cingida no
ligâme da fitaria votiva, o eco dos tambores que lhe parece cadenciar os
passos, é um anúncio da aproximação da festa coincidível com a quadra natalina.
Não resta dúvida, é o “CHAMADO”! Quando soam, começa, então a inquietação, um
bulício se acentua, similar ao Círio Nazareno, “o apreparo”, o apronto dos
quefazeres, a reafirmativa dos propósitos feitos para o cumprimento das
promessas, que é a rememoração dos momentos de angústia por que se passou, é o
volteio d’olhos para a efígie sagrada, aposta à parede de paxiúba, esfumada
pelas velas fumegantes acendidas todas as noites; é mais do que isto, é o Credo
na Comunhão dos Santos, sim, na comunicação da igreja militante com a igreja
triunfante unida com o Cristo e com os bem-aventurados. É a tortura do homem
pelo infinito, a realidade da impotencialidade nossa no reconhecimento da nossa
condição de servos do pecado; e, muito mais ainda, é o direito que nos assiste
de pedir a Deus por intermédio dos seus santos e a complascência dadivosa de
Deus em nos atender. É este o sentido do CHAMADO de São Benedito, ao lume da
nossa fé!
Que se lhe
deturpem alguma vez a santimônia do seu culto, não devemos ver com os olhos
descrentes uma grosseira superstição. A essência da veneração é a prece. A
prece feita em circunstâncias de desassossego d’alma, tem sempre um cunho de
alegria. Rezar é o superlativo divino de cantar. A oração é uma canção
angelizada. Ouve a Deus, os homens escutam-na. Pois bem, não há preceito que
excomungue da família cristã, quem depois de rezar, expanda a tendência
psicológica nos divertimentos sãos. São atos que, embora diversos por natureza,
não devem, contudo, os materiais sobrepor ao divino.
Vivam,
portanto, e se perpetuem os folguedos ingênuos dos arraiais nas quinzenas
festivas das celebrações religiosas. Enfileirem-se barraquinhas no quadrilátero
da praça, que os sons metálicos das fanfarras quase que substituídas pelos
malucos alto-falantes, despertam do sono sensitivo os vencidos pelos anos e
acelere o pulsar dos corações dos recém acordados para a vida.
Raras são as
festas religiosas que não conservam o seu tradicionalismo primitivo e mantido a
muito custo a sua originalidade. Se os modernistas relega-as como inadequados
impróprios da decorrência evolutiva do nosso século, não podem, contudo,
negar-lhes a razão de ser da sua instituição, porque tiveram, como tem, hoje em
dia toda a cousa, a sua finalidade. Que diriam os iconoclastas das “festanças”
dos antigos, assistindo no novenário de São Tiago, no velho Mazagão, ao
anacrônico baile de máscaras, à correria doida do “bobo do meio dia”, ao
simulacro da batalha entre cristãos e mouros, no decorrer da qual, nos áureos
tempos do senador Flexa, eram gastos vários barris de pólvora. E ninguém tentou
acabar de vez com tais folguedos porque eles constituem as alegrias sadias
daquele povo! As festas religiosas têm a finalidade de coordenar o útil ao
agradável. Venham, portanto, as marujas, com seus trajes típicos alegrar o
oitavário beneditino! Elas dizem muito bem da simplicidade do bragantino ao
alicerçar sua devoção em São Benedito. Tudo
nelas é harmonioso e simétrico, desde o ornato da plumagem dos chapéus ao
círculo refletor dos espelhinhos... Se a toada que lhe anima a dança tem a
tristura da dolência, graciosos soa os revoluteios com o babado das saias
roçando de leve pelo chão...
Muito já se
escreveu sobre a Marujada que não teve e nem terá interrupção de continuidade:
é como parte integrante da festa beneditina e, por isso se torna objeto de
promessa a participação de alguém nas suas fileiras, porque o Santo se compraz
com esse folclórico divertimento repetido todos os anos em sua honra. Viva,
pois, a Marujada! Não lhe negacémos os nossos aplausos, e se o entusiasmo
atingir a raia do empolgante, bailem com ela: o rechonchudo Zito César, o
irrequieto Jorge Ramos, o retraído Lauro Cunha, o super-homem Bigu e o minestre
Dico Pinheiro; o ranheta Cunha Júnior e o laborioso Pedro Sousa; o saltitante
Mário Queiroz e o “cabra veio da peste” Rodrigues Pinagé; o altitúdico Eduardo,
o sangüíneo Miguel Leitão e, finalmente eu, também, que, como muitos outros,
possui a elasticidade nas gâmbias tueltas...
A CHEGANÇA do
século dezoito se retratou na Marujada. Ela ouviu o “chamado” na mesma alegria
que de mim se apossou quando soaram os tambores e no meu pensamento veio
avivar-se a glosa singela que o povo rimou numa quadrinha:
- “Que santo é
aquele
que nos ta a
chama?
- É São
Binidito
que vai pro
altá!”
Fonte: FERREIRA,
Leandro. “Eu também atendi ao ‘Chamado’ ”. Bragança
Ilustrada. Bragança (PA). n. 11/12, 1953. p. 38.
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