domingo, 16 de dezembro de 2012

Eu também atendi ao “Chamado”, por Leandro Ferreira (1953)

Longos ribombos de tambores longínquos sorrindo de quebrada em quebrada, ritmados, acelerados por vezes, despertando a alma quieta e laboriosa da colônia e dos povoados, avivando o lume vacilante dos oratónia e dos povoados, avivando o lume vacilante dos oratpor vezes, despertando a alma quieta e laboriosa da colesteiros na Barracrios nos tugúrios, nos ranchos ribeirinhos até se perder com o rumor abafante do centro urbano.
Que sonho é esse, ferindo a sensibilidade auditiva da gente, neste fim de ano – interrogo eu – interrogam tantos?
Antes, muito antes, prescutaram os ouvidos de Jorge Ramos, quando gravou no beiral da “Janela de Bragança”, a realidade convocativa desse som. É o “chamado” de São Benedito, na sua peregrinação, comumente chamada “esmolação”, termo genérico que não é bem isso, porque, quem menos “pede” na região onde lhe erigiram uma igreja – é esse São Benedito – frade siciliano, embaçado no burel franciscano; leigo, porteiro do convento, depois ecônomo, cozinheiro por humildade, esmoler e administrador, milagroso em vida, taumaturgo depois da morte, reconhecido pelo negrume da cútis, embora haja versão de que nenhuma descendência direta tivera ele na genealogia afro, e nós sabemos que entre os bem-aventurados não há preconceito de cor e a sua humildade fê-lo exaltado na veneração do povo em toda a imensidade deste pátrio rincão.
Esmolando ou não, a presença da ícone do Santo afogada na profusão das flores e cingida no ligâme da fitaria votiva, o eco dos tambores que lhe parece cadenciar os passos, é um anúncio da aproximação da festa coincidível com a quadra natalina. Não resta dúvida, é o “CHAMADO”! Quando soam, começa, então a inquietação, um bulício se acentua, similar ao Círio Nazareno, “o apreparo”, o apronto dos quefazeres, a reafirmativa dos propósitos feitos para o cumprimento das promessas, que é a rememoração dos momentos de angústia por que se passou, é o volteio d’olhos para a efígie sagrada, aposta à parede de paxiúba, esfumada pelas velas fumegantes acendidas todas as noites; é mais do que isto, é o Credo na Comunhão dos Santos, sim, na comunicação da igreja militante com a igreja triunfante unida com o Cristo e com os bem-aventurados. É a tortura do homem pelo infinito, a realidade da impotencialidade nossa no reconhecimento da nossa condição de servos do pecado; e, muito mais ainda, é o direito que nos assiste de pedir a Deus por intermédio dos seus santos e a complascência dadivosa de Deus em nos atender. É este o sentido do CHAMADO de São Benedito, ao lume da nossa fé!
Que se lhe deturpem alguma vez a santimônia do seu culto, não devemos ver com os olhos descrentes uma grosseira superstição. A essência da veneração é a prece. A prece feita em circunstâncias de desassossego d’alma, tem sempre um cunho de alegria. Rezar é o superlativo divino de cantar. A oração é uma canção angelizada. Ouve a Deus, os homens escutam-na. Pois bem, não há preceito que excomungue da família cristã, quem depois de rezar, expanda a tendência psicológica nos divertimentos sãos. São atos que, embora diversos por natureza, não devem, contudo, os materiais sobrepor ao divino.
Vivam, portanto, e se perpetuem os folguedos ingênuos dos arraiais nas quinzenas festivas das celebrações religiosas. Enfileirem-se barraquinhas no quadrilátero da praça, que os sons metálicos das fanfarras quase que substituídas pelos malucos alto-falantes, despertam do sono sensitivo os vencidos pelos anos e acelere o pulsar dos corações dos recém acordados para a vida.
Raras são as festas religiosas que não conservam o seu tradicionalismo primitivo e mantido a muito custo a sua originalidade. Se os modernistas relega-as como inadequados impróprios da decorrência evolutiva do nosso século, não podem, contudo, negar-lhes a razão de ser da sua instituição, porque tiveram, como tem, hoje em dia toda a cousa, a sua finalidade. Que diriam os iconoclastas das “festanças” dos antigos, assistindo no novenário de São Tiago, no velho Mazagão, ao anacrônico baile de máscaras, à correria doida do “bobo do meio dia”, ao simulacro da batalha entre cristãos e mouros, no decorrer da qual, nos áureos tempos do senador Flexa, eram gastos vários barris de pólvora. E ninguém tentou acabar de vez com tais folguedos porque eles constituem as alegrias sadias daquele povo! As festas religiosas têm a finalidade de coordenar o útil ao agradável. Venham, portanto, as marujas, com seus trajes típicos alegrar o oitavário beneditino! Elas dizem muito bem da simplicidade do bragantino ao alicerçar sua devoção em São Benedito. Tudo nelas é harmonioso e simétrico, desde o ornato da plumagem dos chapéus ao círculo refletor dos espelhinhos... Se a toada que lhe anima a dança tem a tristura da dolência, graciosos soa os revoluteios com o babado das saias roçando de leve pelo chão...
Muito já se escreveu sobre a Marujada que não teve e nem terá interrupção de continuidade: é como parte integrante da festa beneditina e, por isso se torna objeto de promessa a participação de alguém nas suas fileiras, porque o Santo se compraz com esse folclórico divertimento repetido todos os anos em sua honra. Viva, pois, a Marujada! Não lhe negacémos os nossos aplausos, e se o entusiasmo atingir a raia do empolgante, bailem com ela: o rechonchudo Zito César, o irrequieto Jorge Ramos, o retraído Lauro Cunha, o super-homem Bigu e o minestre Dico Pinheiro; o ranheta Cunha Júnior e o laborioso Pedro Sousa; o saltitante Mário Queiroz e o “cabra veio da peste” Rodrigues Pinagé; o altitúdico Eduardo, o sangüíneo Miguel Leitão e, finalmente eu, também, que, como muitos outros, possui a elasticidade nas gâmbias tueltas...
A CHEGANÇA do século dezoito se retratou na Marujada. Ela ouviu o “chamado” na mesma alegria que de mim se apossou quando soaram os tambores e no meu pensamento veio avivar-se a glosa singela que o povo rimou numa quadrinha:
- “Que santo é aquele
que nos ta a chama?
- É São Binidito
que vai pro altá!”

Fonte: FERREIRA, Leandro. “Eu também atendi ao ‘Chamado’ ”. Bragança Ilustrada. Bragança (PA). n. 11/12, 1953. p. 38.

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