Don Quixote veio de trem
Quantos viventes
emergiriam daquele negrume, daquela escuridão? Quantos, de verdade,
atravessariam o enfileiramento de mangueiras que delimitava, à direita e em
diagonal, o grande espaço vazio onde se localizava a casa, já
previamente limitada a 200 metros pela sombra monstruosa da lateral da Estação
de trem? Raros passantes, lamparinas acesas, eu via flutuar ao longe; outros
mais longe ainda, cujos sons dos tamancos na terra batida meus ouvidos
retiveram para sempre.
Uma vez, entre as
mangueiras, eu vi dois homens carregando um morto dentro de uma rede e alguém,
à frente, lamparina à cabeça parecia mostrar o caminho do cemitério, localizado
lá no fim da rua onde ficava a casa, à minha direita. Soube depois que, em
retorno, era comum os homens pararem, mesmo àquela hora da noite, no Café das
Almas, bem colado ao cemitério para um trago merecido e uma cuspidela, após tão
pesada e árdua tarefa.
Às vezes, à
esquerda, debaixo do único poste de parca iluminação, surgia como do nada mesa
pequena com toalha alvíssima e em cima dessa mesa panelas brilhantes, luzidias,
areadas onde um senhor Izidoro postava-se a vender um mingau mais pobre ainda,
cuja escassez de leite fazia com que a miséria resplandecesse debaixo daquela
luz.
Quanta vontade de
fazer parte daquela ceia iluminada, sem Simão, sem os filhos de Zebedeu, Tomé,
Bartolomeu nem Judas Iscariotes nem tampouco o filho de Alfeu.
Mas é que naquele
tempo as doenças grassavam: tifo, paratifo, febres terçãs, impaludismo e às
crianças de minha família não era permitido alimentos que não fossem feitos em
casas seguras, prudência dos meus pais pois médicos só em Belém.
Outra vez uma
vaca com as ventas resfolegantes e o barulho dos cascos na terra batida
me fizeram, cheia de pavor, abandonar rapidamente meu mirante minha janela de
onde eu via estrelas cadentes, cães vadios, um zeppelin, uma bandeira
portuguesa hasteada no alto de um sobrado verde mais à frente fustigada pelo
vento que vinha lá de baixo, de onde passavam os barcos, da maré que trazia o
cheiro do peixe.
Bem mais tarde,
debatendo-me entre certezas, dúvidas, mentiras e verdades desta tão humana vida
ou obcecada pelo espírito alucinado de algum pesquisador, quis “passar a limpo”
a história do Zeppelin:
Disse-me calmo o
poeta Max Martins:
_ Não, não é do
teu tempo isso, Maria Lúcia, não deves tê-lo visto.
_Sim, sim, claro
que o viste. Havia até uma base deles em Igarapé-Açu confirmava meu primo
e conterrâneo Valdir Sarubi.
Do mingau do
homem pobre, da toalha alvíssima e do brilho do alumínio das panelas sob o foco
teatral do único poste de iluminação tentei, em vão, munida de um material de
desenho, repetir o branco e o brilho dentro do negrume. Em vão. Mas
a imagem continua irretocável dentro da escuridão, apesar de todos os anos
passados.
Jamais cheguei a
confirmar minha... digamos, a evidência de meu posto no mirante. Tudo
levava a crer que adultos atentos que eram meus pais não se aperceberem de uma
criança sozinha, na ponta dos pés, no escuro da casa, correndo de janela em
janela, seria quase impossível.
Quanto aos mortos
levados nas redes, imagem repetida dos desassistidos, repetiu-se, repetia-se e
nem precisava confirmar.
Quando precisei
ir ao dicionário para aclarar a palavra RÓTULA, que era como se chamava em
minha cidade para veneziana, encontrei: gelosia, persiana, escotilha,
luneta... Fiquei satisfeita visualizando a palavra veneziana, persiana,
rótula (eram móveis) e as comparei pela configuração, pelo desenho delas a
pautas, linhas. E ao fazer o mesmo exercício com as palavras luneta,
escotilha, vigia a configuração era, comparativamente, a do óculo, monóculo,
binóculo, telescópio, quem sabe?
Sim, tirando as
fantasias, limitações naturais, invencionices próprias das crianças, eu,
emocionada, confirmei que, de fato, eu lia o amplo vazio, o nada ou o tudo que
se postava à minha frente.
Foi então nesse
campo já naturalmente adubado pela fantasia que descobrimos, eu e meu primo, o
reembolso postal e a maravilha de receber pelo correio, os livros que
começamos a devorar e a disputar quem lia mais livros e maiores. Lembro
de Ubirajara chegando numa manhã esplêndida, o nome de meu primo escrito no
pacote do correio. Sofri, esperando que ele acabasse de ler pra passar
pra mim.
Mas o meu Don
Quixote não chegou pelo correio. Veio de trem, presente de minha madrinha
e quase fiquei sem fala. Era meu, era grande, era ilustrado e a partir
desse momento minha vidinha de menina, minha história ainda tão pequena,
cresceu pros lados e pra cima, animou-se. Conheci D.Quixote,
Sancho, Rocinante. Juntei-me a eles e até hoje combato moinhos de
vento.
Ilha do
Mosqueiro, abril, 2005.
Maria
Lúcia Medeiros
Fonte: Jornal O Liberal.
Olá!
ResponderExcluirAmo as Obras de Maria lúcia Medeiros,
como é bom fazer a leitura de seus textos.
Minha querida professora definitiva em suas paisagens literárias, saudades dos nossos tantos papos literários e das memórias.
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