quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

As vozes da devoção em Bragança (Jornal Beira do Rio, UFPA)

Por Dilermando Gadelha

O ápice da Marujada, a mais conhecida festa em homenagem a São Benedito, acontece nos dias 25 e 26 de dezembro, em Bragança. Entretanto as atividades começam muito antes, ainda no mês de março, com a esmolação, uma peregrinação feita principalmente por homens da região nordeste do Pará, os quais levam a imagem do "santo preto" e pedem contribuições aos moradores e promesseiros que tiveram graças alcançadas ou querem alcançar alguma.

A esmolação dura cerca de oito meses. Ela se irradia em três núcleos e os peregrinos fazem um trajeto que ultrapassa o município de Bragança, chegando a locais como Carutapera, no Estado do Maranhão. Já a Marujada acontece quando as mulheres tomam as rédeas da festa e celebram o Santo com as danças já bastante conhecidas e o leilão dos bens conseguidos durante a esmolação.

A devoção a São Benedito é o tema do livro Pés que andam, pés que dançam: memória, identidade e região cultural na esmolação e marujada de São Benedito em Bragança (PA), escrito por José Guilherme Fernandes, professor da Faculdade de Letras da UFPA, no Campus de Bragança, e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLS), no mesmo Campus.

O livro foi lançado este ano, com o apoio de uma bolsa para Reflexão Crítica em Culturas Populares e Tradicionais, concedida pela Fundação Nacional da Arte (Funarte), em 2010. De acordo com o professor, a ideia de escrever o livro nasceu de um projeto de vida, que é "fazer uma 'cartografia' dessas práticas populares no nordeste do Pará. Trabalhar os vários discursos sobre a Amazônia, tanto da academia, quanto midiáticos, mas também os discursos e saberes populares. Isso vem de um projeto de doutorado e agora se estabelece como um projeto acadêmico e de vida", explica.

A pesquisa para o livro iniciou em março de 2010, com o objetivo de evidenciar as várias vozes presentes na devoção, que, muitas vezes, representam posições diferentes nas relações de poder. Para tanto, o professor privilegiou a linguagem oral, entrevistando os participantes de festa, desde os promesseiros até os representantes da Igreja e devotos.

Esmoladores trabalham divididos em três comitivas - da Praia, do Campo e da Colônia

Termo bragantinidade é tentativa de homogeneização

Segundo o professor, a oralidade foi escolhida como objeto de análise por ser a linguagem mais utilizada no cotidiano e por carregar os traços das histórias de vida e dos mitos. Durante a pesquisa, José Guilherme Fernandes também utilizou textos teóricos e literários sobre a festa a São Benedito, escritos por poetas, historiadores e antropólogos.

A devoção a São Benedito também é um campo em que acontecem jogos de poder. Esses jogos têm como atores as várias pessoas que compõem os eventos, desde os promesseiros que abrem as suas casas para receber as comitivas, até os marujos e as marujas que dançam nos barracões do Santo. A elite econômica e política da região também participa desse jogo, utilizando-se de várias estratégias para exercer o seu poder.

Entre os conceitos aplicados e discutidos no livro, está o de Identidade – e, por extensão, o de identificação – uma das estratégias utilizadas nas disputas de poder. A identidade é um conceito que tende a unificar uma coletividade dentro de um grupo de símbolos pelos quais essa coletividade é lembrada. De acordo com o professor, essa homogeneização mascara a diversidade de pessoas e de lugares de enunciação.

"Algumas pessoas reproduzem os discursos 'nossas tradições', 'nossa cultura', 'nossa bragantinidade', como se todos participassem da devoção da mesma maneira, sem distinções sociais e culturais. Muitas vezes, esse discurso homogêneo cria uma tensão dentro do grupo. Eu procuro apontar essas manifestações de poder na devoção justamente para mostrar que não existe a homogeneidade, mas sim uma heterogeneidade de discursos sobre a devoção", explica José Guilherme.

Falar das manifestações do Santo Preto utilizando o termo bragantinidade para caracterizá-las é uma tentativa de homogeneização. Segundo José Guilherme, essa nomenclatura não foi criada pelos promesseiros da esmolação, por exemplo. O termo é utilizado pelos "poderosos", que exercem o seu empoderamento por meio dessas identidades.

Em contrapartida à identidade única, existem as identidades moventes, ou seja, identificações que dependem da conjuntura. "As pessoas têm consciência de que a bragantinidade funciona em alguns momentos, mas não em outros," explica professor.

Símbolos remontam à história da escravidão no Brasil

O início foi em 1798. A marujada e a esmolação começaram a ser realizadas pelos negros escravizados que habitavam a região bragantina. O culto ganhou força na região pela identificação que a população tinha com São Benedito, por causa de sua história: o Santo era cozinheiro e levava pão do seu local de trabalho para dar aos pobres. Um dia, para não ser pego, transformou os pães em flores, o que é considerado seu maior milagre e, por isso, em uma das imagens, ele aparece com flores nos braços.

É comum relacionar o período de escravidão no Brasil à fundação do culto a São Benedito. Entretanto ela é cada vez menos evidenciada nas manifestações. "O próprio discurso religioso tenta fazer aquilo que Darcy Ribeiro chama de assimilação, ou seja, tratar todo mundo como igual. Então, você inclui a história [do negro], mas não dá visibilidade para esse elemento. Todos falam que a manifestação veio dos negros, mas não aceitam que haja uma ligação entre a umbanda, a pajelança e a devoção ao Santo, por exemplo", explica José Guilherme.

Uma dessas identificações com a umbanda é a relação de São Benedito com a entidade Verequete. Essa relação é difundida em outras regiões do Brasil, mas pouco vista em Bragança. As cores utilizadas pelas mulheres nas danças da Marujada, principalmente o azul e o vermelho, também remontam às raízes negras. O azul tem uma ligação maior com o Menino Jesus, mas o vermelho representa, de acordo com as marujas, o sangue vertido pelos negros durante a escravidão.

Região Cultural – As dinâmicas de identidades e identificações, inclusão e exclusão aplicadas a outros aspectos do culto fazem parte daquilo que o professor caracteriza como Região Cultural, que consiste na formação de uma nova "região", baseada na participação de um grupo que não leva em consideração as fronteiras geográficas. "A Região Cultural se configura em uma territorialidade, ou seja, um território em que há a participação de atores, ligados a uma determinada prática, neste caso, a devoção a São Benedito", explica o professor.

Ao observarmos o trajeto da esmolação durante os oito meses de peregrinação, encontramos evidências de formação dessa Região Cultural, uma vez que as três comitivas que fazem o culto – da praia, da colônia e do campo – ultrapassam o território bragantino. Há poucos anos, a devoção chegou em Carutapera (MA), com um esmolador que se casou no município e deu início à prática da ladainha. "Quem sabe daqui a algum tempo haverá um grupo de esmoladores que vai circular pelo Maranhão?", prevê José Guilherme.

Foto: Acervo do Pesquisador

Fonte: Jornal Beira do Rio. Universidade Federal do Pará. Ano XXV. N.º100. dezembro de 2011

Link: http://www.ufpa.br/beiradorio/novo/index.php/leia-tambem/1285-as-vozes-da-devocao-em-braganca

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