terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Minha imagem do ano de 2015. Aylan Kurdi: tragédia, guerra, vida e morte

Texto de Eduardo Affonso, publicado no Facebook, em 03 de setembro de 2015

No dia em que ia morrer, Aylan Kurdi usava calças azuis e uma camiseta vermelha. A mãe deve tê-lo penteado, ainda que fossem poucos os fios, e tão finos. Agachando-se diante dele, ou segurando-o sobre os joelhos, amarrou-lhe os sapatos e fez, pela última vez, o laço. Aylan caminhou até o porto, com passinhos curtos, ou foi levado no colo? No colo, possivelmente - os braços envolvendo o pescoço da mãe, cabeça reclinada sobre o ombro dela - para não atrasar a marcha rumo à morte.
Até ontem, o mundo não conhecia Aylan, sírio, três anos. Hoje, sua boca colada à areia, as mãozinhas com as palmas para cima, estampam jornais, deslizam nas telas dos computadores, se agarram à nossa retina.
Ao contrário de outras dezenas (milhares?) que foram dar à praia, ou jazem do fundo do mar, de Aylan se sabe o nome, a idade, e que tinha um irmão, que também caminhou com ele (ou foi levado no colo, pelo pai) naquela madrugada, rumo ao porto. E esse nome o humaniza (dar nome a uma coisa é uma forma de amá-la). O corpo anônimo emborcado na praia é um ilegal, uma estatística – Aylan, sírio, três anos, trazido pelas ondas, é a criança que fomos, a que levamos ao pediatra, a que dorme no berço ao lado da nossa cama.
A vida não foi cruel com Aylan. Poupou-o de morrer na guerra, entre poeira, gritos e estilhaços. De ser mutilado, ver a mãe estuprada, o pai degolado. Poupou-o da fome nos campos de refugiados. Poupou-o da longa jornada sobre os trilhos até ser barrado pelos soldados de Montenegro. Poupou-o das cercas de arame farpado da Hungria, dos caminhões frigoríficos da Áustria, das patrulhas da Inglaterra sob o Canal da Mancha - da polícia italiana, dos xenófobos franceses, dos neonazistas alemães.
Em três, quatro minutos, a água salgada invadiu suas narinas, inundou seus pulmões. Nesses infinitos três, quatro minutos, procurou pela mãe, pelo braço do pai, sem entender porque o abandonavam. Então sentiu sonolência - e mar, mãe, medo se tornaram uma coisa só, depois coisa nenhuma.
Aylan não sabia, naquela manhã, que era para a morte que o vestiam de camiseta vermelha e calças azuis. Na foto em que se deu a conhecer ao mundo, o Mediterrâneo, não a mãe, é que penteia seus cabelos.
Não consigo fixar o olhar no seu rosto, nem me demorar nas suas mãos vazias. O que me afoga, junto com ele, com as esperanças de tantos que fogem como ele e ficam pelo caminho, são seus sapatinhos.


Foto: Imagem na internet (2015)

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