Feições fechadas de olhares cerrados, lacrimosos, em rostos de pele negra e morena, com roupas multicoloridas e chapéus turbantes de penas e adornados com fitas esvoaçantes de vários tamanhos e matizes, ao som de tambores “negróides” do lundu. Marujos e marujas caracterizados para reavivar suas memórias marcadas pela fundação da sua irmandade, a do Glorioso São Benedito de Bragança, em 03 de setembro de 1798. Filhas de uma tradição medieval européia, essa irmandades objetivavam o culto e a devoção coletiva a algum santo católico, organizando grupos de “irmãos” em celebrações e festas, além de construírem vários templos religiosos, reunindo em seus quadros elementos étnicos, pobres, caboclos das praias, campos e vilas, que viam nelas uma oportunidade de lazer e liberdade.
O dia de trabalho era trocado pela noite num ambiente de congraçamento, com festança que ia até o raiar das primeiras luzes do dia, provavelmente o 26 de dezembro, na Vila de Bragança, nordeste da Província do Grão-Pará, que despontava no cenário provincial paraense como um pólo abastecedor de matérias-primas até para a capital do Estado.
Na sombra de quase dezesseis horas da tarde, a efígie de São Benedito, amarrada com fitas vermelhas e num andor todo ornado com flores naturais e com muito verde, saía em solene procissão à brisa do vento vindo do rio Caeté, entre cantos e palmas, fogos e rufar de sons típicos da época para mais um espetáculo de fé.
Muitos se acotovelavam para carregar a dita imagem nos ombros: a de um negro, frei franciscano, de aproximadamente setenta centímetros, carregando um menino branco, em resplendores, alfaias e coroas de prata, vestido como pequeno rei. Em suas mãos, de um lado, a imagem ostenta um pão, do outro o próprio menino.
A ordenação do passeio vespertino, na festividade e naquela tarde, eram definidas pela ordem da própria procissão, presença do Clero, indumentária característica e ritos mais ligados a uma tradição popular leiga, como nos cantos, nas danças e nos gestos, um ambiente onde exala o sagrado como cheiro característico de seu povo.
Essa religiosidade popular amazônica é um fenômeno que acontece em quase todas as cidades interioranas do Pará. É um tempo em que essa cidades se agitam, se enfeitam, o povo regozija, os devotos chegam, enfim, a rotina diária é alterada com muita satisfação por aqueles que vêem na festa religiosa um momento de religiosidade e de descontração.
Essa delimitação no mundo da Festividade de São Benedito, em Bragança, parecia comportar dois espaços diferentes e integrados na mesma identidade cristã, aí compreendidos entre os conceitos de popular e eclesiástico, como um caráter particular na história desta manifestação.
Em nossa cultura há uma ambigüidade fundamental: a de sermos um povo latino, de herança cultural européia, mas etnicamente mestiço, situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas . Esta ambigüidade se insurge em outra articulação, que sob o ponto de vista da História, considere o folclore acerca do culto a São Benedito algo tão popular ou realmente espontâneo, quase natural.
Nessas ocasiões festivas vemos os vários trabalhadores, sujeitos transeuntes, que folgam ou mudam seus horários quotidianos para homenagear o padroeiro, batucar, conversar, rezar, dançar e também louvar o seu Deus em motivações da reza cantada em latim arcaico, um mundo mais em sintonia do que em contraste, que revela a influência entre as religiões dos povos indígenas (na figura do caboclo) e do cristianismo (introduzido pelos portugueses e brancos), um exemplo de cultura popular.
O argumento que mais chama a atenção é observarmos de forma itinerante e participante o culto popular que se insere nos casos, não tão raros, de santos “canonizados” pelo povo, em geral, mais humilde e empobrecido. Essas variáveis vemos em Bragança: a formalização das promessas, o banquete, os fogos, as ofertas de ex-votos, as disputas, os lugares, as pessoas e sua satisfação em entender-se dentro de um contexto onde o milagre dita o rumo da vida.
Nisso, buscamos as origens de São Benedito, muito ligada à história de sua devoção na Igreja Católica, como trabalhador, filho de escravos, experimentando a pobreza, milagroso em favor dos humildes e empobrecidos. É latente a identificação da história de vida do frei franciscano com a do povo, como entrar no centro da devoção para com São Benedito, e traduzir, de um modo útil e duradouro nossa própria devoção.
Neste caso em particular é bom recordar que os santos negros, chamados santos da escravidão, contribuíram para amenizar a consciência da espoliação sem embotar a consciência da liberdade dos escravizados, como Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, cultos espalhados pelos recônditos rurais e urbanos do Sudeste do Brasil . Esse fato explica a intensidade de seu culto em São Paulo e Minas Gerais no século XIX, mesmo com a sua posterior carnavalização, costume que só agora declina e não acompanha o apogeu da mestiçagem em que se vive.
O certo é que em muitas cidades São Benedito tomou o seu lugar diante do povo e da vida do povo. Um lugar de cidadão, um lugar de “gente da gente”, como ocorreu em Bragança , com o feriado e legislação pertinente que apóia e justifica o culto.
Outra informação parece factível de análise. A questão dos milagres citados por muitos dos seus devotos. A figura de São Benedito é como que um monumento erguido por seus milagres , que mais parecem lendas ou mitos, sem uma regra ou modelo de entendimento, como fatos dogmáticos, mas sempre abundante entre pobres e desvalidos socialmente. É no milagre que o devoto revive o sublime e a ligação afetiva com o santo, uma união quase familiar. E o povo alcança dele suas graças e milagres.
Como informação, três anos após a morte de frei Benedito, o Tribunal Eclesiástico responsável por seu processo de beatificação já contabilizava 27 milagres atribuídos ao frei negro. A devoção à intercessão a São Benedito espalhou-se e formou-se de tal modo que em 1743 o Papa Bento XIV autorizou seu culto público, fato extraordinário já que a Igreja não permite essa prática sem provas santificadoras. Em 1807, duzentos e dezoito anos depois de sua morte, Pio VII o canonizou depois de o povo tê-lo feito. Sua vida e milagres tão excepcionais e admiráveis pareciam alegorias e atributos da devoção que o atribuiriam anos mais tarde.
O culto a São Benedito chegou às margens e cercanias através pelas mãos do povo. No Brasil, São Benedito obteve imediata aceitação, uma vez identificado com os negros escravos necessitados de socorro e consolação. Santo de pai africanos, tinha na Itália fama de taumaturgo, fama que chegou às senzalas. Mesmo antes de morrer e de ser canonizado, já era grande essa devoção . Cedo tornou-se santo milagroso e glorioso dos negros, também dos brancos, também dos mestiços, também nosso.
Zito Cezar (Pereira) descreveu em seu Sinopse como as pessoas comuns e vários senhores bem-nascidos acorreram aos quadros desta Irmandade bragantina, dando até mais importância ao Santo Negro do que a já aprovada padroeira de Bragança, Nossa Senhora do Rosário, já que Dom Miguel de Bulhões, da ordem religiosa dos dominicanos, tinha grande devoção a esse título de Maria, sugerindo a freguesia que o escolhesse como onomástico da posterior paróquia e até 1754, com a elevação do povoado à categoria de Vila.
Esse ensaio, em particular, tenta interpretar um mundo em torno do culto a São Benedito, presente em Bragança, num ambiente de cultura pulsante. Pensando numa abordagem mais ampla, o que nos encanta é a sinceridade de quem vive essa devoção como parte central de um movimentado dia-a-dia amazônico.
Neste espaço plural – popular e oficial –, o povo reinventa o sagrado, onde em nome de São Benedito, a vida flui, o ethos, a visão de mundo. Isso desde a chegada da pequenina imagem de madeira talhada a um tempo de enorme significado. O santo que vem das águas, fator de grande influência na história da Amazônia exige de nós uma percepção e a re-elaboração do sagrado em nossas próprias vida de penitentes: uma fé que nos remodela e cristianiza, numa cultura popular de sentimento, de resistência e de atualização, no terreno que começou conflituoso e virou palco de lutas e identificação: a escravidão.
A visão do historiador passa a versar o/sobre passado, num conceito de termos, nós todos, o costume em comum , o marco identificador de nossa integração a São Benedito glorioso, nobilíssimo membro de nossas comunidades: famílias, empresas, cozinhas, escolas, altares, sempre ligado à vida dos populares, onde há sons, sinos, barulho de povo, um burburinho de gente, um cheiro de terra pisada a pés descalços.
O santo agigantou-se na geografia de Bragança, que nestes mais de dois séculos ainda influencia, emociona e percorre três regiões distintas e cheias de devotos, desde a forma que toma o trânsito até a maneira de existir do bragantino. São Benedito participa da vida do povo de Bragança, no Pará, como seu amigo ilustre e fiel intercessor: o santo de nossa devoção.
O catolicismo como religião do povo foi também o espaço das manifestações culturais intrínsecas na vida desse povo religioso. Tantas vezes a exteriorização dessas devoções ganhou caráter especial, reforçando a vida comunitária, baseada na fé católica, a esperança desse povo interiorano. Falar de catolicismo popular é buscar entender o jeito que o povo encontrou, mesmo perto das cúrias quase inexistentes, para perseverar na fé ou para vivenciar seus rituais, mesmo desconsertando a moral exigida no exercício de funções especiais, como a que significava ser Juiz de São Benedito.
No que se refere a sua organização econômica, as irmandades possuíam várias fontes de renda: taxas de admissão, contribuições dos oficiais das festas, as esmolas que eram pedidas por irmãos devidamente autorizados, os anuais, as doações dos benfeitores, os aluguéis de propriedades e de terras, os leilões de víveres e animais, etc. Era preciso também controlar quem administraria todos esses bens e recursos materiais. Não só pela situação de estarem bem próximo de construírem sua própria igreja, mas também de contar com o apoio da autoridade do clero.
A construção de prédios bem equipados e ornamentados, revela a importância das igrejas para os negros e para as irmandades, enquanto símbolo de prestígio e espaço de vivência religiosa e social disputado em Bragança pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e pela IGSBB. Quanto ao templo, sua troca foi efetivada em 1872 , doze anos antes do início do processo em que nos debruçamos. As festas religiosas, os pomposos funerais, o socorro aos irmãos mais necessitados também eram indicativos da habilidade das irmandades para gerenciar os seus bens. Para isso cercavam-se de vários cuidados e estabeleciam várias normas para regular a atividade do tesoureiro e do procurador, como encontramos nas páginas do segundo Compromisso da IGSBB.
O que também chama a atenção é que dentro da IGSBB, os negros, quer libertos, quer cativos, não podiam exercer liderança nos cargos dispostos pelos estatutos (em todos os dois compromissos, tanto o de 1798 quanto o de 1853) tomando parte apenas nas deliberações como integrantes. Os escravos e ex-escravos sempre estavam associados a algum tipo de serviço interno (andadores, rezadores, esmoladores, sacristãos) seja para a Irmandade, seja para a parte religiosa da festa, sem direcionar os rumos da confraria, a mando dos Juizes e Juízas, cargos de maior preponderância.
Já foi dito que uma das principais tarefas do historiador é desfazer as teias do silêncio. É dar um sopro vital a sujeitos e vozes de um passado encoberto pelas tramas secretas e artimanhas da história. É não deixar que estes sujeitos se transformem em simulacros de deuses mortos, objetos de um futuro incerto que os reservam apenas o lugar do excêntrico.
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