Publico o texto integral da entrevista que concedi ao jornal O Liberal, em 25 de janeiro de 2004, à jornalista e amiga Esperança Bessa, que trabalhava nessa editoria Cartaz. Foi a primeira vez que falei a um veículo de comunicação desse porte. E devo essa inserção ao convite do Instituto Arraial do Pavulagem (leia-se Júnior Soares e Ronaldo Silva), que me convidaram para abordar o tema de minha monografia de Graduação em História (UFPA Bragança, 2002) no Seminário Cultura e Meio Ambiente, promovido em Belém, de 22 a 23 de janeiro de 2004, realizado no Instituto de Artes do Pará.
Pesquisador teme descaracterização da Marujada (Esperança Bessa, da Editoria de Cartaz)
O auditório do Instituto de Artes do Pará lotou no primeiro seminário “Cultura e Meio Ambiente”, organizado pela Comitiva do Arraial do Pavulagem em parceria com o Instituto, quarta e quinta-feira passadas. Entre os palestrantes estavam Vicente Salles e João de Jesus Paes Loureiro, que falaram sobre o tema central do evento. Mas foi um historiador, o professor Dário Benedito Rodrigues, quem mais chamou a atenção do público durante as explanações. Ele, que nasceu Bragança e é integrante da Irmandade de São Benedito, marujo de carteirinha e membro da diretoria da festa dedicada ao santo no mês de dezembro (marujo é a denominação daqueles que compõem a Irmandade, que promove a tradicional festa em conjunto com a igreja católica) falou sobre o que mais entende: história do santo e a relação de fé do povo bragantino com São Benedito.
Dário, que é professor do campus da UFPA em Bragança, fundamentou sua palestra na pesquisa “Essência Beneditina: Escravidão e fé na Irmandade de São Benedito de Bragança - Do século XVIII e XIX”, que vem trabalhando desde 1998 e será base para sua tese de mestrado. Ele diz que não poderia se dedicar a outra fonte de pesquisa, e confessa que se sente preocupado com a “folclorização” de um evento que deve ter seu caráter religioso em primeiro lugar. “Sou bragantino, Benedito de nome em homenagem ao santo - fruto de uma promessa - e a ligação familiar com a religiosidade é muito grande. Minha história se confunde com essa pesquisa, e temo que as pessoas esqueçam do caráter religioso da festa para só ressaltar o aspecto cultural. A marujada tem ligação com a religião, não é só estética”, diz.
Como foi fundada a Irmandade de São Benedito?
A Irmandade foi fundada em 3 de setembro de 1798, por 14 irmãos negros constituidores e outra centena que foi por eles reunida. Na época, Igreja e os senhores de escravos permitiram a criação da Irmandade, até como forma de manter o controle sobre o culto. Padres e senhores brancos viam nessa sociedade uma forma de ter controle sobre o imaginário do negro, enquanto que os negros viam ali um meio de fugir dos problemas da escravidão. Mas a Igreja não tinha controle sobre a irmandade. O padre ia a Bragança para celebrar Cinzas, Quaresma, Páscoa e Natal, só. No dia 25 de dezembro celebrava o Natal para os brancos, e no dia 26, dia de São Benedito, para os negros.
E por que os negros escolheram, dentro da religião católica, São Benedito para cultuar?
Ele era negro, filho de escravos que foram morar na Itália, e entre seis irmãos foi o único liberto. Aos 18 anos ele teve a vocação para a vida eremita, e foi viver isolado. Aos 21 anos recebeu o convite para integrar o convento de Santa Maria, da Ordem dos Franciscanos. Lá foi trabalhar na cozinha, porque era analfabeto. Só que ele foi de cozinheiro a guardião do convento, posto que nenhum outro negro na face da Terra em todos os tempos conseguiu assumir. São Benedito foi canonizado em 1807, mas antes nem era santo e já era cultuado como beato. Foi considerado santo vivo ainda na sua época. Padres, duques e até cardeais corriam ao convento para ouvir seus conselhos.
Mas sabe-se que ele sofreu muito preconceito dentro do convento também, não foi?
Ele sofria preconceito porque era negro, mas porque também aquela aglomeração de pessoas à porta do convento irritava os outros franciscanos. São Benedito tirava pão de lá e dava aos pobres. Um dos milagres dele foi ter transformado pão em flores, numa ocasião em que um frei mandou ele mostrar o que tinha escondido na roupa. Ele carregava pão, mas dizia que eram flores. Quando foi obrigado a mostrar o que escondia, havia flores. Outro milagre que pessoas contaram na época do processo de sua canonização foi que, durante uma cerimônia de Corpus Christi, levitou enquanto carregava o ostensório. Há também um sobre uma visita do bispo ao convento. Quando o convidado chegou, os padres foram até a cozinha e viram que não havia nada pronto. Procuraram por ele, que estava na capela, rezando. Ele disse que não precisavam se preocupar, que dentro de poucos minutos tudo estaria pronto e realmente foi o que aconteceu. Todos ficaram surpresos, e alguns frades viram a imagem de dois homens brancos ajudando o cozinheiro.
Voltando à criação da Irmandade, como começou efetivamente a atuar em Bragança?
A imagem do santo fazia esmolação pelas praias, campos e colônias, recolhendo dinheiro, víveres e bens para leiloar. Toda renda ia para a construção da igreja de São Benedito. Primeiro eles construíram uma capela de palha ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, até que em meados de 1850 conseguiram o dinheiro e a autorização para construí-la. Negros foram alugados para o trabalho. Quando os padres e senhores viram o tamanho da igreja, tomaram-na, e hoje ela é a Catedral de Bragança, dedicada a Nossa Senhora do Rosário. A antiga igreja da santa - herança jesuíta construída em 1753 por negros e índios - passou a ser a igreja de São Benedito. Essa igreja, inclusive, precisa urgente de patrocínio para a restauração. Temos um projeto arquivado na Secult.
Como a Irmandade conseguiu unir os elementos da cultura afro dos negros e a cultura dos brancos no culto ao santo?
A Irmandade nasce em ambiente de fé e escravidão, e fez simbiose não só da cultura africana e sua relação com a branca, mas também teve a cultura cabocla nesse meio. O violino, conhecido como rabeca, foi colocado ao lado dos tambores africanos. As castanholas nos dedos dos homens são de origem espanhola. A reza em latim é de influência católica, e as roupas lembram a influência negra. Antes a roupa era uma saia para mulheres e calças para homens, todos com estampas. A roupa vermelha (cor oficial de São Benedito) e branca (em homenagem ao Natal) foi adotada como uma forma de uniformizar os integrantes da Irmandade. O chapéu utilizado até hoje é no molde original.
E essa convivência entre igreja, brancos e negros, apesar de manipulada pelos dois primeiros grupos, era pacífica?
Houve uma briga séria no século XX. Em 1947 a Irmandade virou uma entidade civil. Os leigos (fiéis católicos) quiseram tomar conta do dinheiro do santo, e a igreja conseguiu tomar posse da festa. Em 1969 a igreja entrou na justiça, alegando que aquela era uma festa da igreja e que tinha gente usando em favor próprio. Em 1988 saiu a sentença final, depois de ter passado por todas as três instâncias - municipal, estadual e federal. A Igreja ganhou nas três.
Como ficou a situação depois dessa sentença?
Em 1988 eu era ainda pequeno, e me lembro de toda a movimentação social, os comentários das pessoas pelas ruas, dizendo que o controle da festa tinha voltado para a Igreja. As farpas foram sendo aparadas durante dez anos, até 1998, quando se celebrou os 200 anos da festa. O orgulho dos leigos foi diminuindo, as acusações de ambas as partes também, finalmente um padre bragantino assumiu a paróquia e convidou a todos para purificar o caráter profano. Agora a convivência está harmoniosa e em 2003 chegou ao ápice. Todo mundo ficou feliz, e essa alegria pode ser perpetuada e crescente.
Você se diz muito preocupado com a descaracterização da Festa de São Benedito, e com a sobreposição da importância do aspecto cultural e profano sobre o religioso. A partir de quando começa a se observar essas alterações na forma de ver a festa?
A partir dos estudos de antropologia dedicados ao assunto. Não que eu ache isso prejudicial, mas as pessoas que vivem aquilo ali de dentro não podem deixar se influenciar e perder a essência. A imprensa também é muito responsável pela divulgação exclusiva do caráter cultural da festa. Quando se começa a divulgar o lado profano, aí é prejudicial. Não pode haver uma inversão de valores, a religião está em primeiro lugar, todos que dançam não estão ali por acaso, mas pagando uma promessa. A essência dos escravos continua, os mais humildes da comunidade são os elementos principais da festa. Quando o capitalismo põe o dedo, também distorce. Que me desculpem meus irmãos do Amazonas, mas quando a Coca-cola botou o dedo em Parintins, virou show, e temo que o mesmo ocorra um dia em Bragança. A globalização transforma folclore em folclorismo, que não é o folclore bom. Por isso o meu esforço para mostrar a importância histórica daquela celebração. Sou o único que tem nível superior na Irmandade, e me sinto no dever de tentar explicar esse valor que as pessoas sentem, mas não percebem os perigos externos se aproximando. As pessoas só defendem o que amam, e só amam o que conhecem.
Fonte: http://201.59.48.71/oliberal/arquivo/noticia/cartaz/n25012004default3.asp
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