Prof. Dário Benedito Rodrigues*
No início do mês de dezembro, quando quase tudo para em respeito ao Natal ou ao feriado de Nossa Senhora da Conceição (Iemanjá, para alguns), Bragança, pequena cidade do Nordeste paraense, vira um amontoado humano. As ruas do Centro histórico respiram ares de uma religiosidade marcante. O largo em frente à Orla da cidade e as palmeiras imperiais testemunham experiências impressionantes de devoção e cultura. O coração pulsa ao som do tambor “negróide” e os pés, que andam e dançam, caminham no mesmo rumo. É São Benedito, cidadão mais ilustre de Bragança, que reúne a tantos e a muitos em torno da fé e da bragantinidade.
Com mais de cem mil habitantes, o lugar recebe, todos os anos, entre 35 e 50 mil devotos e peregrinos que vêm seguindo o “chamado” do Santo Negro, de vários cantos do Brasil e do Pará, para fazer e pagar promessas, reverenciar sua imagem e reconfirmar o prestígio de São Benedito, o Negro, nascido italiano e filho de escravos etíopes, morto há mais de quatrocentos anos, benfeitor, co-padroeiro e, sobretudo, tradução e alma de Bragança.
Mais do que uma festa popular como tantas outras, o que ocorre em Bragança é um espetáculo de fé, resistência, crença e esperança. É impressionante, quase inacreditável, principalmente se considerarmos quem são essas pessoas, o modo como elas chegam e expressam sua devoção. De maneira geral, se identificam pelas práticas culturais em comum e por uma fé inquebrantável no poder intercessor de São Benedito. Às vezes sem dinheiro ou sem perspectiva, os devotos vêm de lugares afastados e até de outros países para rezar, acreditando nos milagres e na resolução de problemas através do “pedido” de São Benedito.
Os humildes não pedem nem fama nem fortuna. A maioria, mais de 80 por cento dos romeiros e devotos, reza por saúde, para que as pernas não cansem, para que a cabeça pare de doer, que os braços voltem a funcionar, para que o filho sare, pela unidade da família, para alcançar um emprego ou para que a vida melhore.
Uma das maiores atrações locais é a Igreja de São Benedito, em frente do rio Caeté, de herança jesuítica e indígena e construída no século XVIII, onde são depositados centenas de velas, pés de madeira, cabeças de cera, seios de gessos, braços de mentira, casas em miniatura, potes de barro, bonecos de pano e até cabelos, que representam partes do corpo ou instrumentos de promessa que tiveram a ajuda e graça por intermédio de São Benedito, isso sem falar no dinheiro daqueles que tiveram seus pedidos atendidos.
Nem todos os devotos têm alguma coisa a dar em troca dos favores do Santo Negro. A única moeda que possuem para retribuir a graça alcançada é o próprio corpo. Por isso, pagam suas promessas vestindo-se apropriadamente de marujo ou maruja, indumentária símbolo de Bragança, espremendo-se no barracão para dançar, na procissão para acompanhar a efígie do Santo ou em frente ao seu andor para conversar com seu protetor, algo profundamente simples, mas que, às vezes, como acender uma vela, implica em vencer a pé e sozinho uma etapa da vida, representada na procissão.
A cada ano, em oito meses, a Igreja Católica e três comitivas organizam o processo de Esmolação com três imagens diferentes de São Benedito, arrecadando víveres, esmolas, dinheiro e a fé dos comunitários do interior e “pagando” esses esmoladores que deixaram suas famílias em casa. Estima-se que circule uma importância significativa nos comércios da cidade por causa da venda de bugigangas e dos presentes de Natal. E por que não dizer, dos artefatos que compõem a indumentária característica do período.
Nos dias da festividade, cada espaço do largo de São Benedito é ocupado por barracas e pessoas que vendem de tudo: artesanato, bijouteiras, lembrancinhas, estátuas de santo, especialmente de São Benedito, quinquilharias, chapéus de marujo e maruja e, presença constante em quase todas as festas, objetos de uso religioso como terços, escapulários entre outros.
Como há uma “multidão” que vem à Bragança no período da festividade, emigrando de vários lugares para estender suas mãos em direção ao Santo Negro, os hotéis da cidade não são suficientes para abrigar tanta gente e, de qualquer modo, os lares bragantinos são os locais por onde toda essa gente passa os dias do ciclo de São Benedito, entre os parentes e agregados, para “passar” o período que vai do Natal ao Ano Novo e viver a emoção do dia 26 de dezembro, feriado local.
Um lugar como este, no entanto, atrai turistas incautos. Para os bragantinos, essa química inefável de fé e cultura dá a impressão de funcionar como chamariz ao fervor de tantos que “atendem o chamado”. Na Igreja, depois de atravessar seus quase cinquenta metros de marujos e marujas, durante a missa solene e retransmitida pelo rádio, há uma imagem preciosíssima de São Benedito num altar-mor ornada de flores.
Após a procissão, basta ali algo entre dez minutos para assistir a pungentes e comoventes demonstrações de fé. Em sinal de respeito tiram seus chapéus e disputam espaço para terem a honra de tocar a imagem de São Benedito, beijar sua fita, enquanto rezam, fazem seus pedidos ou agradecem os milagres recebidos. Nos olhos de todos cintila um brilho de certa esperança, numa demonstração rascante de uma crença inabalável. De novo, para os incautos, é uma cena inconcebível: a fé em estado bruto e sólido, palpável e indelével, contra os riscos que sofrem tantos pelo hedonismo e pelos contra-valores da sociedade “dita” moderna e civilizada.
Depois de passar quase dois dias inteiros pagando suas promessas, vestidos ou não com a roupa da Marujada, os devotos encerram sua festa com a procissão pelas ruas de Bragança, com todos os sujeitos da festividade, do padre ao tocador de rabeca, do juiz da festa ao músico da Furiosa, que encerram o dia com uma missa campal em frente à Igreja, patrimônio histórico e principal local dos festejos beneditinos de Bragança. Nesse vinte e seis de dezembro, e em horário indefinido, todos se reúnem para ouvir as palavras acalentadoras do discurso longo do padre. Diante de milhares de pessoas, as humildes e as humilhadas, que dificilmente entenderiam o significado do conceito de manipulação de massas, ele abençoa os fieis que reviraram suas vidas para visitar a cidade e começa sua preleção com a seguinte explanação:
“- O que acontece é uma legítima demonstração de fé, de amor a Jesus Cristo, por São Benedito!” E só depois de ouvir essas duas palavras – “são” e “Benedito” – é que marujos e marujas, ao som das canções beneditinas e caboclas, desfranzem a testa e tiram seus chapéus deixando de lado aquela expressão de quem não está entendendo nada para trocá-la por urras, vivas e palmas ao nome que mais lhe cala no peito: o do Glorioso São Benedito.
* Dário Benedito Rodrigues é historiador, pesquisador e docente da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará, em Bragança.
Referências:
BORDALLO DA SILVA, Armando. Contribuição ao Estudo do Folclore Amazônico na Zona Bragantina. Belém: Falangola Editora, 1981.
MORAES, Maria José Pinto da Costa de. ALIVERTI, Mavilda. SILVA, Rosa Maria Mota da. Tocando a Memória – Rabeca. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2006.
NONATO DA SILVA, Dário Benedito Rodrigues. A Essência Beneditina: Escravidão e Fé na Irmandade de São Benedito de Bragança, do século XVIII ao XIX. (Monografia de Conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História). Bragança: UFPA, 2002.
REVISTA VER-O-PARÁ (AMAZÔNIA), n.º 11. “Bragança, 200 anos de Marujada”. Belém: Agência VER Editora, 1998.
ROSÁRIO, Ubiratan. Saga do Caeté: folclore, história, etnografia e jornalismo na cultura amazônica da Marujada, Zona Bragantina, Pará. Belém: Cejup, 2000.
SILVA, Dedival Brandão da. Os Tambores da Esperança: um Estudo Antropológico sobre a Construção da Identidade na Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança. Belém: Falangola Editora, 1997.
Fotos: Acervo pessoal.
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