Texto
de Eduardo Affonso, publicado no Facebook, em 03 de setembro de 2015
No
dia em que ia morrer, Aylan Kurdi usava calças azuis e uma camiseta vermelha. A
mãe deve tê-lo penteado, ainda que fossem poucos os fios, e tão finos.
Agachando-se diante dele, ou segurando-o sobre os joelhos, amarrou-lhe os
sapatos e fez, pela última vez, o laço. Aylan caminhou até o porto, com
passinhos curtos, ou foi levado no colo? No colo, possivelmente - os braços
envolvendo o pescoço da mãe, cabeça reclinada sobre o ombro dela - para não
atrasar a marcha rumo à morte.
Até
ontem, o mundo não conhecia Aylan, sírio, três anos. Hoje, sua boca colada à
areia, as mãozinhas com as palmas para cima, estampam jornais, deslizam nas
telas dos computadores, se agarram à nossa retina.
Ao
contrário de outras dezenas (milhares?) que foram dar à praia, ou jazem do
fundo do mar, de Aylan se sabe o nome, a idade, e que tinha um irmão, que
também caminhou com ele (ou foi levado no colo, pelo pai) naquela madrugada,
rumo ao porto. E esse nome o humaniza (dar nome a uma coisa é uma forma de
amá-la). O corpo anônimo emborcado na praia é um ilegal, uma estatística – Aylan,
sírio, três anos, trazido pelas ondas, é a criança que fomos, a que levamos ao
pediatra, a que dorme no berço ao lado da nossa cama.
A
vida não foi cruel com Aylan. Poupou-o de morrer na guerra, entre poeira,
gritos e estilhaços. De ser mutilado, ver a mãe estuprada, o pai degolado.
Poupou-o da fome nos campos de refugiados. Poupou-o da longa jornada sobre os
trilhos até ser barrado pelos soldados de Montenegro. Poupou-o das cercas de
arame farpado da Hungria, dos caminhões frigoríficos da Áustria, das patrulhas
da Inglaterra sob o Canal da Mancha - da polícia italiana, dos xenófobos
franceses, dos neonazistas alemães.
Em
três, quatro minutos, a água salgada invadiu suas narinas, inundou seus
pulmões. Nesses infinitos três, quatro minutos, procurou pela mãe, pelo braço
do pai, sem entender porque o abandonavam. Então sentiu sonolência - e mar,
mãe, medo se tornaram uma coisa só, depois coisa nenhuma.
Aylan
não sabia, naquela manhã, que era para a morte que o vestiam de camiseta
vermelha e calças azuis. Na foto em que se deu a conhecer ao mundo, o
Mediterrâneo, não a mãe, é que penteia seus cabelos.
Não
consigo fixar o olhar no seu rosto, nem me demorar nas suas mãos vazias. O que
me afoga, junto com ele, com as esperanças de tantos que fogem como ele e ficam
pelo caminho, são seus sapatinhos.
Foto: Imagem na internet (2015)
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