por Dário Benedito Rodrigues*
Bragança é uma das cidades mais importantes do Nordeste do Pará, com o grande diferencial de uma população hospitaleira, um comércio intenso em diversos períodos do tempo, uma agricultura forte, uma organização socioeconômica e posição geográfica de interseção entre o Pará e o Maranhão, uma educação cheia de valores e moldes de diferentes contribuições desde os indígenas, passando pelos europeus até os africanos, o que influenciou nos hábitos, costumes e na vida social de seus habitantes.
Até os dias de hoje, esses padrões culturais estão marcados nas estruturas construídas, nos casarões revestidos de azulejos importados, na culinária, nas danças, na musicalidade, na tez da pele do povo bragantino, na organização do trabalho, na forma de perceber e tratar o tempo e até nas diferenças sociais implícitas que hoje podem ser detectadas em observações pontuadas.
Ao final do século XIX e início do XX, a cidade pôde experimentar um rescaldo da tão propalada prosperidade, com a organização de seu espaço urbano, com a diversificação do setor comercial em vários ramos, com a intensificação dos trabalhos da imprensa (por meio de jornais e periódicos), além de estar prestes a ser ligada à capital do Estado pela ferrovia, um entreposto importante para o seu desenvolvimento e marco balizador do tempo e da memória bragantinos.
Antes da implantação da Estrada de Ferro de Bragança, em 1908, as relações com Belém, com São Luís e até mesmo com outras áreas do litoral eram feitas por meio de viagens demoradas e perigosas; ou então via rio Guamá, onde metade do tempo era cumprida por terra – a pé ou a cavalo – e a outra metade em pequenas embarcações. Anos mais tarde, esse trajeto era feito em pequenos navios da Companhia Costeira do Maranhão.
No que tange à história do catolicismo em Bragança, é sensível e expressiva uma atuação do segmento leigo, seja em sua organização, seja em sua liderança. As decisões envolvendo os assuntos das festas religiosas passavam por uma grande influência leiga, ligada às diversas irmandades religiosas que administraram por muito tempo o patrimônio religioso e cultural da cidade. As decisões emanadas encontraram acolhida na autoridade religiosa, isto é, junto aos sacerdotes da Paróquia de Bragança, com um acréscimo de sua contribuição para a realização das festas que marcam, até os dias de hoje, as grandes procissões e atos religiosos dos católicos bragantinos.
Num documento de 29 de março de 1764 se encontra a referência à devoção e culto a Nossa Senhora de Nazaré em Bragança, na missão jesuítica destinada à catequese indígena dos padres jesuítas (Companhia de Jesus). O documento assinado pelo ouvidor geral Feliciano Ramos Nobre de Mourão é auto de devassa, espécie de censo feito sob a determinação do governo, que em um ponto específico relata a existência da igreja de São João Baptista, construída na missão jesuítica, desapropriada em estado de ruína pelo decreto nº 27 do então prefeito Augusto Corrêa e demolida na década de 1940, por seu avançado estado de ruína. Diz o documento: "O orago hé São João Baptista, nos altares colateráes estão o senhor Jesus Crucificado, e a Senhora de Nazaré: Está suficiente provida de ornamentos, ainda que o vigario aponte que necessite de alguns”. Abaixo, foto do Cruzeiro da Aldeia, local onde estava edificada a Igreja de São João Batista, demolida na década de 40 do século XX (Fonte: Acervo pessoal).
Mais adiante e sobre o mesmo assunto, consideramos os jornais como importantes fontes, de onde se desenha um quadro social bem interessante, a incrementar um mosaico de relações sociais de sujeitos tão diversos, formando opiniões e se relacionando com o quotidiano, dando a impressão de como estava organizada a vida social, cultural e a comunicação em Bragança à época, por uma elite que se “endinheirava” e se integrava física e materialmente com Belém, pelos trilhos do trem.
Essa interseção com Belém não se deu apenas com os aspectos sociais, mas sobremaneira pelo aspecto religioso que administrava o cenário paraense, como no caso do maior santuário de devoção popular do Pará, o de Nossa Senhora de Nazaré, numa íntima ligação com Bragança. Em mais de duzentos anos da paróquia de Bragança, os padres da Ordem dos Clérigos Regulares de São Paulo, conhecidos por barnabitas, foram os que mais empreenderam as maiores intervenções e trabalhos nesse setor.
Em Belém, a tradição do Círio como procissão e costume português de se levar uma imagem religiosa de um local ao outro, se inicia em 1793, quando as autoridades eclesiásticas e políticas entendem por bem homenagear os feitos e a religiosidade popular devotada em Nossa Senhora de Nazaré, esculpida e agigantada na pequenina imagem encontrada pelo amazônico caboclo Plácido José de Souza, que morava na Estrada de Maranhão (hoje Avenida Magalhães Barata), num acontecimento revestido de lenda e história.
Era necessária a licença de Roma para a realização de festas e procissões como esta, recebida em 1790, pelo então bispo de Belém dom Monteiro Noronha, que aguardava a nomeação de seu sucessor, o bispo dom Manuel de Almeida Carvalho. Sob a liderança de Francisco de Souza Coutinho, capitão-general do Rio Negro e Grão-Pará, avolumou-se a devoção nazarena em Belém, muito a partir de uma promessa pessoal do então capitão, que em sinal de agradecimento realizou a primeira procissão do chamado Círio (símbolo de fé do catolicismo, que se constituiu numa vela muito utilizada em período litúrgico pascal), acompanhado por seus funcionários e por populares em geral, sendo a imagem conduzida pelo capelão do Palácio, padre José Roiz de Moura. Assim iniciava essa tão importante manifestação de religiosidade do povo do Pará. E já se vão mais de duzentos anos desde que essa festa começou a ser realizada.
Já em Bragança, um turbilhão de fé arrasta milhares de pessoas que em caminhada sob o sol escaldante da cidade, homenageiam e cultuam Maria, sob o título de Nossa Senhora de Nazaré. Os quilômetros que separam a pequena Igreja de São Benedito da Catedral de Nossa Senhora do Rosário (antiga Igreja Matriz), no centro da cidade, testemunham um mistério que só se compreende pela linguagem da fé, um desafio para os que tentam desvendar a paixão inexplicável na história do catolicismo ligada à jovem Maria de Nazaré, mãe de Jesus Cristo.
Certamente, como uma festa religiosa e centenária nas terras bragantinas, a presença de ordens religiosas se remonta à fundamental intervenção desses religiosos no curso da vida social, cultural e religiosa do povo bragantino, por vezes questionável. Segundo relatos orais, recolhidos anteriormente, a festa da padroeira de Bragança, Nossa Senhora do Rosário era bem mais pomposa e participada que as demais, sendo organizada por uma irmandade. Por circunstâncias do tempo, a instituição da festa do Círio de Nazaré nas terras do Caeté pode ser considerara um aspecto de intensa circularidade cultural entre tradições religiosas que vinham de Belém.
Se Bragança possui um dos Círios do Pará mais antigos, isso se deve à organização empreendida pelos padres barnabitas da capital, que se instalaram na cidade bem antes de 1930. Por certo, o Círio antecede esse fato. Como a Igreja Matriz de Bragança estava sob a administração eclesiástica da Diocese de Belém, os vigários colados eram as figuras que melhor interagiam com a população, em nome da religiosidade, morando entre os populares e sendo muito benquistos por eles.
Uma fonte em especial, já anunciada numa publicação de 2003, trata de um registro antigo do Círio bragantino. Alguns fatos se confundem com esta fonte jornalística e talvez seria oportuno e mais próximo da análise histórica afirmar que o Círio de Bragança possui bem mais que os cem anos festejados em 2003, pela observação atenta ao que traz o texto do jornal, “O Caeté”, pertencente ao coronel Antônio Pedro, em matéria de primeira página daquela edição, acerca do Círio.
Um olhar diferenciado notará que ao descrever o “Noticiário da Festividade da Virgem de Nazareth”, o jornal anuncia o costume do itinerário, daí mesmo, ao se aplicar uma análise histórica, não se trata, portanto, do primeiro círio, mas de um registro acerca dele, já que o cortejo tinha percurso costumeiro, o que não significa ter sido o centésimo Círio, mas possivelmente uma das fontes mais antigas a relatar a festa.
Para nos informar, diz o jornal “O Caeté” na parte à direita da página inicial, de 29 de novembro de 1903 que "no domingo da festa, ás 5 horas da tarde, sahirá em procissão a Imagem da Virgem de Nazareth, percorrendo o itinerário do costume”. Eis a página do jornal abaixo (Fonte: Revista Círio 2003, ASCURBRA):
Em virtude da proximidade de datas, em Bragança a festa do Rosário foi perdendo gradualmente o seu esplendor, quando da introdução da festa de Nazaré, no mês de novembro. Em algumas entrevistas se nota que a pompa da padroeira de Bragança, homenageada em uma quinzena do mês de outubro, com preparação de lugar (barraca da santa), procissão, andor, diretoria, irmandade religiosa, votos e promessas cedeu espaço à introdução do culto a Nossa Senhora de Nazaré, mais devotada na capital.
Ainda pelo mesmo registro, o Vigário da época era o Cônego Miguel Joaquim Fernandes (1814-1904), sacerdote bragantino e defensor de ideias políticas liberais, muito influente e que, após seu falecimento, fora substituído, segundo fontes, pelos padres Paulo Maria Lecouriex, Eduardo Maria Meda, Florence Maria Dubois e Carlos Maria Rossini, que foram residir no prédio onde funcionaram as primeiras salas do Instituto Santa Teresinha em 1938 e hoje sedia a Fundação Educadora de Comunicação. Essa mesma moradia serviu para abrigar também as primeiras Irmãs do Preciosíssimo Sangue – preciosinas – que vieram em 12 de agosto de 1938 com o padre Eliseu Coroli ajudá-lo nos trabalhos de educação.
Esses padres pioneiros, entre os problemas de saúde, idioma, manutenção financeira e dificuldades de comunicação com Belém, retornaram à capital do Estado. Outros faleceram anos depois, como o padre Meda, em 1906. Dezenove anos depois, assumiu a Paróquia do Rosário o então Secretário do Bispado, padre Luiz Borges de Sales, que revitalizou o Círio de Nazaré com uma comissão formada pelos senhores Mariano da Costa Rodrigues Filho, Filenilo da Silveira Ramos e Julião Risuenho. Mais tarde, com o falecimento do cônego Sales, o padre Salvador Tracaiolli assumiu a paróquia, dando prosseguimento com a celebração da festividade nazarena. Abaixo, foto da procissão do Círio de Nazaré em Bragança (sem data e autor desconhecido) onde se nota que não se utiliza a berlinda em madeira e a presença de uma banda de música acompanhando o cortejo (Fonte: Acervo de pesquisa).
Em 14 de abril de 1928, o papa Pio XI criou um novo território prelatício, com o título de Prelazia de Nossa Senhora da Conceição do Gurupi, dada à administração dos barnabitas, liderados por Francisco Richard como administrador apostólico, sendo Ourém escolhida como sede. Em 1934, Bragança passou a pertencer a esta prelazia, inclusive escolhida como sua sede, sendo a padroeira modificada para o título de Nossa Senhora do Rosário.
Um dos fatos curiosos que nos foi anunciado pelo Jornal “Folha do Caeté”, de novembro de 1949, trata da mudança feita no trajeto da procissão. O Círio de Nazaré em Bragança, em face de desentendimentos entre a Prelazia do Guamá e a Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança, à época, teve o trajeto da procissão modificado, cuja trasladação saiu da Igreja Matriz à capela da Maternidade de Bragança e de lá saiu a procissão, diferentemente da Igreja de São Benedito como o é atualmente. O retorno da saída do Círio de Nazaré da Igreja de São Benedito só se deu em 10 de novembro de 1957 por determinação de dom Eliseu Coroli, para contemporizar questões relacionadas a esses desentendimentos. Mas em 1953, a procissão saiu do Instituto Santa Teresinha em 14 de novembro. Dessa década em diante, o Círio de Bragança cresceu e atingiu as vilas congêneres à Bragança, como em Urumajó, por exemplo, em 1958. O itinerário da procissão só foi modificado no ano de 2001, quando administrava a paróquia de Nossa Senhora do Rosário o sacerdote bragantino padre Aldo Fernandes. O novo percurso saindo da Igreja de São Benedito passa por vários bairros (Centro, Riozinho, Morro, Alegre, Cereja, Padre Luiz) e pelas outras duas paróquias de Bragança (Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro), como num “abraço de Maria de Nazaré” a seus filhos bragantinos. Abaixo, foto da chega da procissão do Círio de Nazaré em Bragança, na Residência Episcopal - Cúria diocesana de Bragança (Fonte: Acervo pessoal).
Vários fatos recorrentes ao Círio de Nazaré podem ser aqui lembrados, assim como de suas relíquias e objetos. A berlinda – um tipo de transporte europeu adaptado para receber a imagem de Maria – de mais cento e vinte anos é um deles. Entre os anos de 1955 e 1965, segundo dados da Basílica de Nazaré, por iniciativa da Sra. Benedita Ferreira, sabedora da construção de outra nova berlinda para a procissão em Belém, procurou o então vigário da Basílica de Nazaré, padre Afonso di Giorgi propondo-se a recuperar a antiga peça em madeira e doá-la para Bragança, com a ajuda do padre e dom Mário de Miranda Vilas-Boas. Assim foi feito. Esta berlinda em madeira, hoje no Museu de Arte Sacra de Bragança, foi restaurada novamente em 1982, por iniciativa do Sr. Afonso Maria de Ligório Cavalcante, fato noticiado pelo extinto jornal “Folha de Bragança”, do jornalista Soares Filho. Este carro foi usado até 2000, quando outra peça foi confeccionada e doada à paróquia do Rosário. Abaixo, a foto da berlinda de Nossa Senhora no Museu de Arte Sacra da Diocese de Bragança (Fonte: Acervo pessoal).
Outra relíquia importante da festa nazarena é a primeira réplica em madeira da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, confeccionada na Itália, a pedido do então vigário da Basílica, dom Miguel Maria Giambelli, falecido em 2010. A peça foi encomendada ao artista italiano Giácomo Mussner, que a fez em dois modelos. A imagem escolhida para o Círio de Belém, colocada pela primeira vez na berlinda em 1969, foi a que não contém em seu entalho o manto em formato triangular, ficando a segundo réplica, com o manto esculpido junto ao corpo da imagem destinada à Bragança. O abrigo da imagem hoje é, há muitos anos, o gabinete pessoal de dom Eliseu Coroli, sob os cuidados das Irmãs Missionárias de Santa Teresinha. Foi dom Miguel Giambelli que organizou, por exemplo, a descida da imagem encontrada pelo caboclo Plácido do altar intitulado “Glória” até o presbitério da basílica, já que o evento era feito de forma modesta e simples.
Fato interessante relacionado ao Círio foi a inauguração da Rádio Educadora de Bragança, em 12 de novembro de 1960, quando o então arcebispo dom Alberto Ramos abençoou os estúdios e o padre Miguel Giambelli iniciou as transmissões sonoras da emissora. No outro dia, a Educadora realizou um dos seus primeiros grandes desafios: a transmissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que se tornou seu trabalho inicial e pioneiro.
O hino “Virgem de Nazaré”, outro ícone dessa festa, é originalmente um poema de autoria da poetisa paraense Ermelinda de Almeida e que foi musicado, por volta dos anos 60, pelo padre Vitaliano Vari, também barnabita, que era Vigário de Bragança e professor no Instituto Santa Teresinha. A Guarda de Nazaré, criada em 1974, teve como seu fundador e primeiro presidente o também barnabita padre Giovanni Incampo, que exerceu a função de vigário da Paróquia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Bragança e por muitos anos superior provincial da ordem.
Entre outros fatos, citamos a atuação do padre Luciano Brambilla, sacerdote barnabita colaborador de dom Eliseu Coroli que viveu e trabalhou em Bragança entre 1952 e 1978. Quando da sua experiência como vigário da Basílica, em 1981 e juntamente com a diretoria do Círio na capital, conseguiu recursos junto ao governo federal para a construção do Centro Arquitetônico de Nazaré, inaugurado em 1982. Além disso, através de seu trabalho. Em entrevista ao jornal “Voz de Nazaré”, padre Giovanni Incampo, então Superior da ordem no Norte do Brasil, relatou: “Padre Luciano era muito ligado espiritualmente com o saudoso dom Eliseu Coroli e com dom Miguel Giambelli, com certeza padre Luciano adquiriu uma riqueza espiritual e de conhecimentos em Bragança e trouxe para a Paróquia de Nazaré”.
Padre Luciano foi um dos organizadores de procissões e romarias que hoje compõem a programação da festa nazarena, como a romaria fluvial, ocorrida pela primeira vez em 08 de outubro de 1978 e a romaria rodoviária, realizada inicialmente em 07 de outubro de 1989, que ainda saía do Monumento da Cabanagem, no Entroncamento.
E como este ano de 2011, o Círio reflete (refletirá) a busca pela valorização da história bragantina, prestes a completar seu quarto centenário desde que os franceses passaram por esse território em 1613, percorremos, enfim, essa “trasladação” histórica até Belém, retornando em “Círio” à Bragança. Reunimos alguns dados, factuais por certo, e os colocamos à disposição, leitura e posterior reelaboração, percebendo o quanto imbricado está a história da religiosidade católica bragantina e sua influência com Belém, pela presença dos padres barnabitas, pela força do laicato, pelos aspectos que ligam as duas festas religiosas e pela vinculação de Bragança aos títulos de Maria, mãe de Jesus, chamada de Nossa Senhora, a partir de sua Concei(p)ção, de Nazaré, ou com o Rosário nas mãos, abençoando os seus filhos e filhas de Bragança.
* Dário Benedito Rodrigues é bragantino, historiador, pesquisador e docente da Faculdade de História na Universidade Federal do Pará, em Bragança.
** Observação importante: Qualquer publicação desse material sem a prévia consulta ao autor não está autorizada e se constitui em crime sujeito às penalidades da legislação brasileira.
Que maravilha....apreender a cada dia mais, parabéns pelo seu blog fechado de informações e de história, claro..kkkk
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